domingo, 26 de janeiro de 2020

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO AOS PEIXES: NA URDIDURA DA PALAVRA, UMA IRONIA AO COMPORTAMENTO HUMANO


Rogério Martins de Carvalho
 
Com a ironia você sai do reino do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso – de maneiras que vão muito além do que sugere o uso desses termos na teoria dos atos da fala. A ironia remove a certeza de que as pala­vras signifiquem apenas o que elas dizem. (HUTCHEON apud ALAVARCE, 2009, p. 46).

Este ensaio pretende analisar a função da ironia presente nas palavras do Padre Antônio Vieira, ao proferir o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Nascido em Lisboa, no ano de 1608, Antônio Vieira, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo, foi um religioso, escritor e orador português que lutou contra a escravidão dos índios e defendeu a liberdade religiosa, num tempo em que os suspeitos de heresia eram condenado pela inquisição. Em 1614, com seis anos de idade, Antônio Vieira chega com sua família ao Brasil. Entrou para o Companhia de Jesus e ainda noviço foi indicado para redigir a carta com os relatos das atividade dos jesuítas, enviada anualmente a seus superiores em Lisboa. Dedicando sua vida à atividade religiosa, Padre Antônio Vieira morre em Salvador, Bahia, no ano de 1697.

Proferido na cidade de São Luís do Maranhão, em 1654, contra os colonos portugueses no Brasil, o Sermão de Santo António aos Peixes constitui-se em um documento da surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Padre António Vieira. Ao tomar vários peixes (o roncador, o pegador, o voador e o polvo) como símbolos dos vícios daqueles colonos, o texto de Vieira apresenta uma construção literária e argumentativa, indiscutivelmente, notável. Em síntese, o sermão pretende louvar algumas virtudes humanas e, principalmente, censurar com severidade os vícios dos colonos. Entretanto, a maneira como o autor faz isso é que merece nossa atenção, uma vez que, utilizando-se de uma linguagem imbuída de ironia, convida o leitor a perceber, na urdidura da palavra, a intenção do texto.

Como já prenunciado, o texto de Vieira reveste-se de uma linguagem irônica para a partir daí externar sua real intenção. Nesta direção, julgamos necessário pensar na etimologia da palavra ironia, a fim de melhor compreendermos a função desta no Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Segundo Alavarce (2009), “[...] a palavra ironia provem do termo latino dissimulatio. (p, 29). E ressalta a autora: “é importante não perder de vista que a raiz grega eironeia indica dissimulação e interrogação (p. 47). Como podemos observar, do ponto de vista semântico, a palavra ironia, tanto na raiz grega quanto latina, assume o significado de dissimulação. Entretanto, a raiz grega complementa a carga semântica da palavra, atribuindo-lhe ainda a significação de interrogação.

Semanticamente a palavra ironia, de origem grega, mostra-se mais abrangente e, por isso mesmo, mais propícia para o nosso trabalho. Pois, se por um lado a ironia assume o sentido de dissimulação – divisão ou contraste de sentido; por outro, ela assume o sentido de interrogação – questionar, julgar. É sobre esse prisma que a ironia aparece no texto de Vieira.

O sentido de ironia enquanto dissimulação e interrogação pode ser percebido logo na introdução (exórdio) do sermão, momento em que Vieira, obedecendo à estrutura deste, inicia sua pregação citando e comentando um trecho bíblico:

Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que tem o ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? (VIEIRA, 2013, p. 02).

A maneira como Antônio Vieira, em seu texto, censura os vícios dos colonos e critica alguns comportamentos do homem é que merece a atenção do leitor. No trecho supracitado, por exemplo, é preciso um olhar atento às entrelinhas para perceber a ironia, o contraste de sentidos instaurados no instante em que o sal e seu efeito de impedir a corrupção (putrefação) é tomado como metáfora da palavra de Deus, que por sua vez, quando pregada, ouvida e praticada, impede a corrupção humana. Vieira lança mão de uma linguagem revestida de ironia nos permitindo perceber, na urdidura de suas palavras, que a corrupção humana reside na falta de compromisso do homem para com a palavra de Deus.

Esta afirmação fundamenta-se quando, ainda na introdução da obra, o autor se põe a questionar, ironicamente, o efeito do sal que não salga, referindo-se à negligência dos pregadores para com a palavra de Deus, e da terra que não se deixa salgar, referindo-se aos ouvintes que não dão ouvidos ao que está sendo pregado:

Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. (VIEIRA, 2013, p. 02).

Convicto de sua função de sal, pregando a verdadeira doutrina e, ciente de que a terra não se deixaria salgar, ou seja, de que o homem (na pessoa dos colonos) não daria ouvidos às suas palavras, Antônio Vieira decide, então, direcionar sua pregação aos peixes. Não nos parece arbitrário afirmar que nesta decisão reside a “grande ironia” do texto de Vieira. Haja vista que uma leitura minuciosa das entrelinhas do sermão nos permite projetar a ironia do autor frente à irreverência dos colonos em relação à palavra de Deus. Desta forma, já que os homens não querem me ouvir, então vou pregar aos peixes. É válido observar que para perceber a ironia nas palavras do autor, no decorrer da obra, faz-se necessário não perder de vista que os peixes para quem direciona sua pregação são metáforas de pessoas. 

Iniciando sua pregação aos peixes, e, novamente sendo fiel à estrutura do sermão, padre Antônio Vieira propõe logo no início do desenvolvimento (parte dedicada à exposição e confirmação), que vai do capitulo II ao V, a divisão do sermão aos peixes em dois pontos: “no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. E observa Vieira: “e desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.” (VIEIRA, 2013, p. 05).

É preciso um olhar atento para perceber, numa “simples” observação, a carga de ironia por trás de cada palavra pronunciada por Vieira. No trecho supracitado, a observação feita por ele aponta, ironicamente, para a ideia de que é preciso ser como o sal, é preciso impedir a corrupção humana, o que só pode ser feito em vida e não depois de morto.

Os louvores aos peixes acontecem dentro da obra em dois momentos. Primeiro, Antônio Vieira expõe os louvores em geral, depois faz uma exposição dos louvores em particular. Dos louvores em geral, um merece nossa atenção, não porque ele seja mais ou menos importante do que os demais, mas, porque acreditamos conter neste, uma certa ironia ao comportamento (dos colonos) humano: “[...] tem os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.” (VIEIRA, 2013, p. 04). Ao elogiar estas duas boas qualidades de ouvintes dos peixes, Vieira apropria-se das mesmas para, de forma irônica, tecer uma crítica às conversações das pessoas (colonos) durante o sermão.

Ao expor os louvores em particular, Padre Antônio Vieira toma quatro peixes como merecedores dos seus mais sinceros louvores: o Santo Peixe de Tobias, cujo fel era bom para curar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios; a Rémora, que ao se pegar ao leme de uma nau da Índia, a prende e amarra mais que as próprias âncoras, não podendo esta mover-se, ir adiante; o Torpedo, capaz de fazer tremer o braço do pescador ao picar a isca; e o Quatro Olhos, que tem o privilégio de possuir dois olhos direcionados para cima, livrando-se da aves e outros dois direcionados para baixo, livrando-se dos outros peixes.

Diante da notável construção literária e argumentativa do padre Antônio Vieira, podemos inferir que a escolha dos peixes, merecedores de louvores em particular, não ocorre dentro da obra, de maneira aleatória, pelo contrário, percebemos ali uma escolha proposital com tudo muito bem arquitetado.

Ao louvar o Santo Peixe de Tobias, por exemplo, cujas entranhas servira para expulsar os demônios da casa de Tobias e curar a cegueira de seu pai, faz-se necessário não dispersarmos o olhar durante a leitura para, então, percebemos o fio de ironia presente nas palavras do autor. É no interior do Santo Peixe de Tobias que habita a sua grandeza. Ironicamente, Padre Antônio Vieira apropria-se deste peixe para despertar a atenção do homem (dos colonos) acerca da necessidade de velar pelas virtudes interiores, pois nelas consiste a verdadeira grandeza. Ao louvar a Rémora, percebemos nas entrelinhas do texto de Vieira uma ironia no sentido que o homem precisa impor limites aos seus ímpetos, e, movido pela razão, não se deixar dominar pela fúria das paixões, nem pela soberba. É preciso buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção.

Ao louvar o Torpedo por sua nobre capacidade de fazer tremer o braço do pescador, Vieira apropria-se da qualidade deste peixinho para, ironicamente, questionar acerca da necessidade do homem tremer diante da palavra de Deus. Padre Vieira, portanto, propõe ao homem o arrependimento e a conversão a Deus.

Do louvor ao peixe Quatro Olhos, podemos extrair do pensamento irônico de Padre Antônio Vieira uma crítica ao comportamento humano que, sujeitando-se às vaidades terrenas, volta seus olhos somente para baixo e, preocupados com as coisas desta terra, deixa de voltar seus olhos para o Céu, não se preocupando, portanto, em agradar a Deus. Para Vieira, ao homem compete não se deixar dominar pelos vícios desta terra, de modo que tais vícios corroborem para sua cegueira em relação à palavra divina.

Como podemos observar, mesmo quando o Padre Antônio Vieira parece estar, simplesmente, enchendo o ego daqueles peixinhos com seus mais sinceros louvores, suas palavras surgem revestidas de ironia em relação ao comportamento humano que, deixando de assumir sua função de sal da terra, agem com irreverência para com a palavra e a vontade de Deus.   

“Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.” (VIEIRA, 2013, p. 14). Assim começa o IV Capítulo da obra. Capítulo dedicado, como a própria introdução denota, às repreensões de Padre Antônio Vieira aos peixes. Da mesma forma que os louvores, as repreensões também ocorrem em dois momentos. Primeiro, Padre Vieira faz uma repreensão em geral e depois se apropria de quatro peixes distintos repreendendo-os em particular. Assim sendo, podemos destacar pelo menos três repreensões em geral:

[...] é que vos comeis uns aos outros. [...] Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. (VIEIRA, 2013, p. 14).

É possível observar que estas três repreensões caminham na mesma direção: criticar o fato dos peixes comerem uns aos outros. Já que não podemos deixar de inferir que há nestas sábias e críticas palavras uma ironia ao comportamento humano. É preciso estar atento às entrelinhas para conseguirmos perceber, nas palavras do autor, qual a função da ironia ali instaurada.

Utilizando-se de um pensamento de Santo Agostinho, o próprio Vieira dá ao leitor uma prévia de sua intenção ao repreender os peixes em geral: “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que comem uns aos outros.” (VIEIRA, 2013, p. 14). Como podemos observar, a função da ironia, neste momento, é questionar a cobiça, a ganância e a sede de poder entre os homens enquanto molas propulsoras para que estes, assim como os peixes, devorem-se, digladiem-se.

Após repreender os peixes em geral, Vieira parte para as repreensões em particular. Para tanto, elenca o autor quatro peixes aos quais direciona suas irônicas palavras. São eles: os Roncadores, sendo estes tão pequenos, merecem repreensão por serem as roncas do mar; os Pegadores, repreendidos porque sendo pequenos não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam as costas, jamais se desgrudam; os Voadores, que não se contentando com o mar e com o nadar, merecem repreensão por quererem voar; o Polvo, digno de ser repreendido por ser o maior traidor dos mares.

Ao repreender os Roncadores por sua capacidade de, sendo peixes tão pequenos, serem as roncas do mar, Padre Antônio Vieira abre caminho para inferirmos, a partir de suas palavras, que ele tece uma ironia ao comportamento humano, já que, muitas vezes, o homem ocupa-se do muito falar e do pouco ouvir e praticar.

Não podemos nos esquecer de que Vieira é padre, razão pela qual acreditamos que sua ironia em relação aos roncadores segue na direção de criticar, não só os falatórios por parte dos colonos durante o sermão, como também, no sentido de que ao homem compete não se deixar conduzir pela arrogância e soberba motivado, muitas vezes, pelo muito poder e o muito saber, evitando, portanto, a ostentação e os vãos falatórios. Desta forma, Vieira propõe ao homem que melhor do que blasonar é calar-se e deixar que seus atos falem.         

Quanto aos Pegadores, repreendidos por sua ação “parasita”, já que ao pegar às costas dos peixes maiores lhes pega e jamais se desgrudam, Vieira nos permite perceber, em suas palavras, uma ironia ao comportamento humano que, na maioria das vezes, não hesita em usurpar os favores oriundos do poder e das riquezas do outro tornando-se dependente das providências deste, vivendo à mercê de seus favores e defendendo, veementemente, seus interesses. Neste momento, percebemos que, ironicamente, Vieira não abre mão de propor ao homem a necessidade de depender de Deus e não do próprio homem. Caso contrário, perecendo o homem, perecerão também todos os que dele depende. Nesta direção, reforça Vieira: “Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus.” (VIEIRA, 2013, p. 23).

Com os Voadores, que não contentando com o mar e com o nadar querem voar, Padre Antônio Vieira possibilita-nos, enquanto leitores, perceber nas entrelinhas do seu texto uma crítica à ambição humana, pois como ressalta o próprio Vieira: “Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.” (VIEIRA, 2013, p 24).

O polvo por sua vez:

[...] com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, [...] o dito polvo é o maior traidor do mar. (VIEIRA, 2013, p. 26).

Ao apropriar-se do maior traidor dos mares, capaz de camuflar sua própria aparência, armando ciladas para capturar sua presa, Antônio Vieira, mais uma vez, tece uma ironia ao comportamento humano. Para Vieira, há na terra, assim como nos mares, falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas. Entretanto, é na terra que estão as maiores e mais perniciosas traições, pois é na terra que habita o homem com toda a sua sorte de corrupção.

Diante do exposto, podemos concluir que a funções da ironia em Vieira é, sobretudo, criticar o comportamento dos colonos e, consequentemente, o comportamento humano, já que, entregues a uma vida de corrupção, não assumem na terra a sua função de sal, de tal maneira que não salgam com suas vidas de vícios, soberba, ganância e arrogância e nem se deixam salgar, tornando-se irreverentes para com a verdadeira doutrina, capaz de inibir a corrupção humana, a palavra de Deus.

Assim sendo: “Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória” (VIEIRA, 2013, p. 30). Assim conclui Padre Vieira o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Há, nestas últimas palavras do autor, certo tom de ironia que caminha na direção de externar sua revolta para com os “peixes da terra”, de modo que estes, não assumindo a função de sal na terra, não dando ouvidos à palavra de Deus, nem deixando para trás os vícios, a corrupção, não são, portanto, merecedores de graça, nem glória, e muito menos de louvores como foram os peixes do mar. Diante do exposto, podemos concluir este trabalho salientando que o Sermão de Santo Antônio aos Peixes é, na urdidura da palavra, uma ironia ao comportamento humano.

REFERÊNCIAS                                                                                                                        

ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e sua refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso. São Paulo. Cultura Acadêmica, 2009.

VIEIRA, Antônio. Sermão de Santos Antônio aos Peixes. Biblioteca Digital. Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa. Porto Editora. 2013.

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

IMAGENS DE MULHERES: O DESLOCAR DO MITO DE PENÉLOPE NA POESIA DE AUTORIA FEMININA

IMAGES OF WOMEN AROUND THE MYTH OF PENELOPE IN THE POETRY OF FEMALE AUTHORSHIP

Rogério Martins de Carvalho1

Resumo: A poesia de autoria feminina, aqui representada pelas escritoras brasileiras, Myriam Fraga e Marina Colasanti e pela escritora portuguesa, Maria Tereza Horta, ao deslocar a personagem homérica, Penélope, do seu lugar de origem, fruto do pensamento falocêntrico, engendra imagens de mulheres a partir do pensamento feminino. Propondo uma verdadeira revisão dos mitos e atuando no interior do discurso patriarcalista, a literatura de autoria feminina passa a apresentar na contemporaneidade, contradiscursos, resignificando o lugar e o papel da mulher na sociedade. 

Palavras-chave: Mito de Penélope. Poesia. Discurso. Relações de gênero. 

Abstract: The poetry of female authorship, here represented by Brazilian writers Myriam Fraga and Marina Colasanti and the Portuguese writer, Maria Teresa Horta, to move the Homeric character, Penelope, from its place of origin, the result of phallocentric thought engenders images of women from female thought. Proposing a genuine review of the myths and acting within the patriarchal discourse, the literature of female authorship shall submit in contemporary world, counter-discourses, redefining the place and role of women in society. 

Key-words: Myth of Penelope. Poetry. Speech. Gender relations.

1 Especialista em Letras – Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. 

1 INTRODUÇÃO

      Aquela que tece enquanto espera, esta é a imagem que nos salta à mente quando ouvimos, lemos ou pensamos sobre o mito de Penélope. A personagem homérica, inserida numa sociedade ostensivamente patriarcalista, é pensada a partir dos princípios de fidelidade extrema da mulher que fica em relação ao marido que parte.
    Opondo-se a isto, a literatura e, em especial, a poesia de autoria feminina, desloca o lugar de Penélope configurando-a não mais como aquela que tece enquanto espera, submissa, fiel e passiva. Percebemos na Penélope circunscrita dentro da poesia feminina o: “[...] deslizar do lugar da espera, mesmo que esse movimento se constitua apenas como vontade ou, ainda, como auto-reflexão de sua própria condição na sociedade” (SILVA, 2011, p. 1).
    Vitimada por uma sociedade cujo discurso patriarcalista imperou por muitos e muitos séculos, a mulher se vê confinada a ocupar o espaço doméstico, o que não lhe confere o direito à vida pública. Impossibilitada de expressar-se publicamente por séculos, a mulher, oportunamente, apropria-se das possibilidades proporcionadas pelos novos tempos e, sabiamente, adentra inúmeras áreas da sociedade rompendo estereótipos e desestabilizando discursos cristalizados.
    Dentre esses espaços adentrados pela mulher, no campo das artes, a literatura, tem se concretizado ambiente propício para a revisão de arquétipos e imagens impostas a esta, uma vez que, como podemos inferir a partir do pensamento de Silva (2004, p. 1), escritoras empreendem uma verdadeira revisão dos mitos ou arquétipos femininos eleitos pela cultura patriarcal e que cristalizaram determinadas imagens, passando agora a serem problematizados e ressignificados.
   Ao empreenderem uma revisão dos mitos e arquétipos femininos cristalizados pela cultura patriarcal, estas escritoras têm contribuído para o deslocamento de imagens há muito impostas à mulher. Escritoras, como Myriam Fraga, com os poemas: Penélope e Os argonautas, Maria Tereza Horta, nos poemas: Regresso e Violência e Marina Colasanti, com a obra: A moça tecelã, apropriam-se da escrita poética e apresentam, em sua literatura, contradiscursos que põem em evidência o inconformismo feminino. Nesta direção, ao reescreverem o mito de Penélope, as escritoras reelaboram novas perspectivas de representações da mulher, possibilitando-nos refletir e repensar não só o lugar de Penélope dentro da mitologia, mas o lugar da mulher na sociedade a partir da ótica feminina.
     Para ajudar nas discussões abordadas neste artigo recorremos ao apoio teórico de Colling (2004), que ao discorrer sobre a construção histórica do feminino e do masculino, nos permite compreender os conflitos relacionados às questões de gênero. Para a autora, “[...] as relações entre homens e mulheres, [...] implicam desigualdades políticas, econômicas e sociais e [...] configuram papeis diferenciados segundo o sexo” (COLLING, 2004, p. 17).
     Silva (2012), que ao estudar as rasuras do mito de Penélope na literatura de autoria feminina, mais especificamente na literatura de Myriam Fraga em: Purificações ou o sinal de talião, publicado em 1983, coloca-se a refletir sobre a literatura feminina enquanto lugar de desconstrução de arquétipos propostos pelos mitos. Segundo Silva (2012, p. 1), “[...] os mitos começaram, na emergência da poesia de autoria feminina, a serem ressignificados, problematizando questões inerentes a nossa humanidade, [...], colocando em discussão o masculino e o feminino na cultura”.
   Welzer-Lang (2001), que em seu texto intitulado: A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia, ao discorrer sobre a relação homem/mulher, masculino/feminino na sociedade, analisa os esquemas, os hábitos, o ideal viril, homofóbico e heterossexual que constroem e fortalecem a identidade e a dominação masculina sobre o feminino.
     Vianna (2001), que em seu ensaio intitulado: Sexo, cultura & política, ao problematizar acerca das questões de gênero, abordando sobre as noções de sexo e sexualidade, propõe que o ser masculino ou o ser feminino se dá no âmbito sociocultural. Para o autor, é a sociedade quem define os seus campos do feminino e do masculino, e o grau de tolerância e aceitação quando tais papéis não coincidem com corpos machos e corpos fêmeas.
     Ao discorrer sobre a temática: Imagens de mulheres: o deslocar do minto de Penélope na literatura de autoria feminina, o presente artigo torna-se relevante uma vez que analisa como se dá o deslocamento do mito da personagem homérica, Penélope, dentro da literatura de autoria feminina e o que esta literatura propõe quando revisa os mitos.

2 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, UMA ANÁLISE DOS ESPAÇOS OCUPADOS PELO HOMEM E PELA MULHER NA SOCIEDADE

    Antes de analisarmos como se dá o deslocamento do mito de Penélope na literatura de autoria feminina e o que esta propõe quando revisa os mitos, objeto de estudo deste artigo, julgamos necessário traçar uma breve discussão acerca da relação homem/mulher, buscando compreender esta relação como uma relação de dominação do masculino sobre o feminino.
     Se levarmos em consideração os espaços demarcados socialmente para o homem e para a mulher ao logo da historiografia humana, perceberemos como já prenunciado na introdução deste trabalho, que ao homem é conferido o espaço público e à mulher o espaço privado. Em outras palavras, podemos dizer que ao homem é conferido o direito de trabalhar fora de casa, de desfrutar dos prazeres extraconjugais, de manter e governar o lar, a esposa e os filhos; ao passo que à mulher compete cuidar do lar, dos filhos e submeter-se ao governo do marido, fiel e passivamente.
     Nesta direção, ao discorrer sobre a relação de dominação do homem sobre a mulher, Welzer-Lang (2001, p. 461) ressalta que: “Os homens dominam coletiva e individualmente as mulheres. Esta dominação se exerce na esfera privada ou pública e atribui aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos.”
   No âmbito social evidenciamos que a opressão das mulheres pelos homens aparece como um sistema dinâmico no qual as desigualdades vividas pelas mulheres são os efeitos das vantagens atribuídas aos homens pela própria sociedade. Nesta direção, Vianna (2001), observa que:

[...] para se entender o caráter socialmente construído do ser feminino e do ser masculino. Basta que nos voltemos para a nossa própria sociedade: o carro para o menino, a boneca para a menina; a rua para o menino, a casa para a menina; a rispidez para o menino, a delicadeza para a menina [...]. Um menino delicado e uma menina muito moleque chamam logo a atenção porque estão fora do lugar (VIANNA, 2001, p. 102).

    Como podemos evidenciar, a partir do pensamento supracitado, é a sociedade quem impõe e molda o ser homem e o ser mulher, o ser masculino e o ser feminino. Assim, podemos concluir que o ser homem e o ser mulher surgem como resultado de uma construção social. No entanto, vale salientar que essa construção social do homem e da mulher, do masculino e do feminino, implica uma relação de desigualdade no que tange à mulher, uma vez que esta, como bem afirma Colling: “é alienada pela condição histórica que a sociedade lhe reserva. [...] é fabricada pela história, enclausurada em papéis que lhes são designados, obrigada a se submeter à condição de objeto e à passividade” (COLLING, 204, p. 32).
    É graças à situação pela qual vem passando a mulher ao logo dos séculos, mulher essa, ora enclausurada, ora confinada no espaço privado/doméstico, obrigada a se submeter à condição de objeto e à passividade, sem direito à participação na vida pública nem nas decisões políticas, que muitas mulheres inconformadas com tal situação começam a galgarem para si novos espaços, inclusive o espaço público. A respeito da ocupação deste espaço por homens e mulheres, Colling (2004) evidencia que:

No espaço público, espaço da política por excelência, homens e mulheres historicamente se situaram em pólos opostos. O homem público sempre reconhecido de sua importância, participando das decisões de poder. Já a mulher pública, sempre foi vista como uma mulher comum que pertence a todos, não célebre, não ilustre, não investida de poder (COLLING, 2004, p. 22).

    Ainda nesta direção, Perrot (1998, p. 7) ressalta: “a mulher pública constitui a vergonha, parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria.” Assim fica evidente que, na dualidade entre o espaço público ocupado pelo homem e o espaço público ocupado pela mulher, há uma relação desigual no que se refere aos papeis conferidos pela sociedade a cada um dos indivíduos.
    Com seus espaços demarcados pela sociedade e na sociedade, homens e mulheres passam a comportar-se como manda o figurino. A mulher, enquanto “senhora do lar” enclausura-se, fiel e passiva em seu lar, cuidando do marido, da casa e dos filhos; o homem enquanto pessoa pública regressa-se à vida pública, participando das decisões políticas e desfrutando de tudo o que lhe é conferido pela sociedade.
    Esta demarcação de espaços para homens e mulheres tão arraigada junto à sociedade passa a influenciar o campo das artes. A literatura, por sua vez, inserida numa sociedade ostensivamente patriarcalista, por séculos contribuiu para a perpetuação de arquétipos que põem a mulher confinada no âmbito do espaço privado. Na Idade Média, com um recorte histórico um pouco mais distante dos nossos dias, a literatura de Homero, um clássico universal, já idealizava uma mulher apta a coabitar o espaço privado. Em A Odisseia, por exemplo, como veremos adiante, Penélope é aquela que fica e tece enquanto espera ansiosa pelo retorno de Ulisses. Ali presenciamos Homero, confinando Penélope na instância do privado e Ulisses, como herói, é colocado no espaço público, a guerrear, a desbravar os mares e a desfrutar da proteção dos deuses.
    Na contemporaneidade, a demarcação dos espaços para homens e mulheres tem se invertido ou pelo menos tem sido revista e repensada, principalmente no âmbito da literatura, já que, com o advento da literatura de autoria feminina, a mulher apropria-se da palavra escrita passando a expor seu pensamento e seu discurso frente às imposições da sociedade para com a mulher.
     A literatura de autoria feminina, portanto, tem se concretizado ambiente propício, possibilitando à mulher desconstruir arquétipos impostos à mesma ao longo dos séculos pela sociedade e, principalmente, pelo pensamento masculino/falocêntrico que, de posse da palavra escrita e da liberdade de expressão proporcionada pela sociedade sempre moldou, na literatura, a mulher conforme seus ideais.
     Diante do exposto, fica evidente que a literatura de autoria feminina, contrariando um modelo de escrita literária que já na Idade Média moldava a mulher enquanto aquela que, com uma vida restrita ao lar apenas cuida da casa, dos filhos e espera fiel e passiva pela chegada do marido, propõe, na contemporaneidade, uma revisão de arquétipos e imagens há muito designados à mulher, passando, portanto, a construir, a partir do pensamento, da ótica e da escrita feminina, imagens de mulheres que em muito difere daquela pensada e idealizada por uma sociedade pautada nos ideais patriarcalistas, falocêntricos, machistas.
     A literatura de autoria feminina ao propor uma revisão dos mitos, mais especificamente do mito de Penélope, personagem homérica analisada neste trabalho, nos possibilita visualizar o real inconformismo feminino diante da situação enfrentada pela mulher ao logo dos séculos. Dessarte, a personagem homérica quando inserida dentro da literatura de autoria feminina, passa a ser urdida, não mais com os fios da passividade, mas, sobretudo, com os fios do inconformismo de uma mulher outrora passiva, fiel e submissa.

3 PENÉLOPE, UMA TECELÃ URDIDA COM FIOS DE INCONFORMISMO NA POESIA DE MYRIAM FRAGA E MARIA TEREZA HORTA

     Na poesia de Myriam Fraga, além da obra Os Deuses lares, publicado em 1991, em que Penélope é retomada e problematizada, Penélope pode ser percebida, a princípio, em dois poemas, Penélope e Os argonautas, publicados em Purificações ou o Sinal de Talião, em 1981. Ao reescrever o mito de Penélope, a escritora baiana, no poema que leva, no título, o próprio nome da personagem homérica, engendra uma Penélope cujo Ulisses passa a residir, tão somente, no plano da memória:

Hoje desfiz o último ponto, 
A trama do bordado. 

No palácio deserto ladra 
O cão. 

Um sibilo de flechas 
Devolve-me o passado. 

Com os olhos da memória 
Vejo o arco

Que se encurva, 
A força que o distende.

Reconheço no silêncio 
A paz que me faltava, 
(No mármore da entrada 
Agonizam os pretendentes). 

O ciclo está completo 
A espera acabada.

Quando Ulisses chegar 
A sopa estará fria. (FRAGA, 2008, p. 264).

    Desfeito o último ponto, finda a espera por Ulisses. Finda a ideia daquela que tece enquanto espera. Assim começamos a entender o deslocamento do mito de Penélope dentro da poesia de Myriam Fraga. Para a Penélope fragueana, Ulisses encontra-se circunscrito no plano da memória. Isso se torna evidente quando, no interior do poema, deparamo-nos com imagens tais como: “Um sibilo de flechas / Devolve-me o passado. / Com os olhos da memória / Vejo o arco / Que se encurva, / A força que o distende. (FRAGA, 2008, p. 264). Estas imagens demarcam, para Penélope, a ausência física de Ulisses, metaforizando um silêncio que lhe devolve a paz.
     Ao contrário da Penélope homérica, que espera fiel e passiva por Ulisses durante vinte anos, enganando seus pretendentes através do heroico ato de tecer durante o dia e destecer à noite, a Penélope pensada por Myriam Fraga, cujos pretendentes agonizam no mármore da entrada, é fiel não mais à longa espera por Ulisses, mas ao próprio estado de transformação interior em que se encontra. Este estado de transformação pode ser testificado nos últimos versos do poema. Nestes, percebemos que ao chegar Ulisses, Penélope não será mais a mesma: “A sopa estará fria” (FRAGA, 2008, p. 264).
     Penélope, ao lançar Ulisses no plano da memória, liberta-se do imperioso jugo da espera. Este libertar-se pode ser entendido como uma metáfora do desejo de uma mulher que, por longo período da historiografia humana, viu-se impossibilitada de desatrelar-se do imponente senhoril de uma sociedade patriarcalista que, dentre outras coisas, impedia-a de ocupar o espaço público.
     Nascida de mãos inconformadas, a poesia fragueana, ao repensar o mito de Penélope, não abre mão de problematizar a dualidade entre este espaço público ocupado pelo homem e o espaço privado imposto à mulher. Esta dualidade adquire relevância discursiva nas entrelinhas do poema, Os argonautas:

[...]
Há os partem
E os que tecem
Na urdidura das sombras,
É Penélope
Mais astuta que Ulisses?
(FRAGA, 2008, p. 238).

     Nos versos de Myriam Fraga, Penélope é aquela que fica e tece enquanto Ulisses é aquele que, como os argonautas, parte para cumprir seu destino. Neste aspecto, a Penélope, de Myriam, a princípio, parece não diferir da de Homero em A Odisséia. No entanto, basta não dispersarmos os olhos e logo perceberemos o diferencial entre a Penélope homérica e a fragueana.
     “Prudente”, “ajuizada”, “sensata”; estes são os adjetivos (típicos do discurso patriarcalista) que recaem sobre Penélope, em Homero. Sobre Ulisses, incidem qualificativos dignos de um herói: o “nobre”, “guerreiro solerte”, o “astuto”. Ao revelar uma Penélope mais astuta que Ulisses, a poesia de Myriam Fraga lança por terra, todo um modelo que reduz a mulher à estância doméstica/privada:

A “astúcia” de Penélope frente a Ulisses corrói todo um modelo que tem a mulher circunscrita na estância doméstica e com características diferenciadas em relação ao homem, remetendo a questão da “natureza feminina”. Astúcia é um atributo culturalmente convencionado como masculino, cabendo ao feminino outros atributos, modelados socialmente/culturalmente. (SILVA, 2007, p. 3).

     Pensada enquanto dona de um atributo culturalmente convencionado como masculino (a astúcia), a Penélope, circunscrita dentro do poema, Os Argonautas, rompe com o convencionalismo que reserva ao feminino outros atributos modelados social e culturalmente, dentre os quais se encontram: a ajuizada dona de casa, a prudente boa mãe e a sensata acompanhante do marido. Vale ressaltar que tais atributos configuram-se elementos delimitadores dos espaços e funções da mulher junto à sociedade. Assim como o de muitas mulheres, criadas: “[...] para enclausurar-se no espaço privado, dedicando-se à família e às coisas domésticas, zelando pelo bem-estar do marido e filhos, vocação benéfica para a sociedade inteira” (COLLING, 2004, p. 23).
     O heroísmo de Penélope reside na invisibilidade. Atrelada em seu próprio conflito, a personagem fragueana não consegue fazer outra viagem senão para dentro de si mesma, desbravando sua inquieta jornada, cujo timão é a angustia:

É difícil partir,
É tão difícil
Desatrelar do cais
Este navio
Que se chama Conflito.
[...]
A angústia é meu timão
Meu astrolábio
Nesta inquieta jornada.
(FRAGA, 2008, p. 237).

     Há, nas entrelinhas dos versos fragueanos, uma fenda que nos permite visualizar uma zona de conflito, entre o espaço público conferido ao homem e o espaço privado imposto à mulher. Esta zona de conflito aparece metaforizada na dualidade entre o destino dos argonautas, que partem “filhos do destino”, e o das tecelãs, que ficam:

[...]
Como barcos,
Ancorados em si,
No seu cansaço.
(FRAGA, 2008, p. 238).

      A Penélope, de Myriam Fraga, em Os Argonautas, ancorada em si mesma, não se configura como aquela que, sentada em frente ao tear, tece enquanto espera, mas como aquela cujos fios de inconformismo tecem o próprio estado conflitante pelo qual perpassou a mulher ao longo dos séculos, sedada à vida privada, mulher esta:

[...]
Que se renova apenas
Do que tece
e destrói.
(FRAGA, 2008, p. 238).

    A poesia de Myriam Fraga, como podemos evidenciar, ao deslocar a personagem homérica do seu lugar de origem, reescreve imagens de mulheres tecelãs, urdindo Penélope com fios de inconformismo.
    São com estes fios de inconformismo que a escritora portuguesa Maria Teresa Horta, à sua maneira, ao reescrever imagens de mulheres tecelãs, urde Penélope. Em Minha senhora de mim, publicado em 1974, encontramos o poema Regresso. Neste, o tecido é o próprio corpo da autora. É o corpo o lugar de viagem para onde regressa em reencontro consigo mesma:

Regresso para mim
E de mim falo
E desdigo de mim
Em reencontro
Os pontos
Um por um:
O sol
Os braços

A boca
O sabor

Ou os meus ombros

Trago para fora
O que é secreto
Vantagem de saudade
O que é segredo

Retorno para mim
E em mim toda
Desencontro já o meu regresso
(HORTA, 2009, p. 313).

    Em regresso ao seu próprio interior, na tentativa de reencontrar-se consigo mesma, a autora, tecendo ponto a ponto externa sua dimensão íntima, secreta, o que o eu-lírico resolve chamar de segredo. Logo após o externar deste segredo, percebemos um movimento de retorno, denunciando o refazer-se constante.
     Este refazer-se constante, presente nos versos de Maria Tereza Horta, e o renovar-se apenas do tece e destrói em, Os Argonautas, de Myriam Fraga, estabelecem uma intertextualidade dentro da poesia de autoria feminina, dialogando com a situação pela qual passou a mulher ao longo dos séculos, submetida a uma vida de opressão, tecendo sonhos e planos com dias de liberdade e destruindo-os no dia seguinte, sendo, portanto, “convidada” a renovar-se constantemente.
      Esta vida de opressão imposta à mulher, pela qual perpassa a poesia de Maria Tereza Horta, pode ser melhor compreendida nas entrelinhas do poema, Violência:

Ó secreta violência
dos meus sentidos domados
em mim parto
em mim esqueço

senhora de meu
silêncio
com tantos quartos fechados

Anoitece e desguarneço
despeço aquilo que
faço

Ó semelhança firmeza
mulher doente de afagos
(HORTA, 2009, p. 313).

    Angustiantes são estes versos, quando a autora engendra imagens de mulheres que, fadadas a uma vida de opressão, domadas e encerradas em seus quartos, não realizam outra viagem senão para dentro de si, enveredando por espaços com tantos quartos fechados. A secreta violência, prenunciada nos versos de Horta, metaforizam a angustiante situação de opressão a que foi submetida a mulher durante séculos. Mulheres silenciadas pelo discurso patriarcalista que as moldavam segundo suas convenções, tornando-as “senhoras do lar”, mulheres surdinamente inconformadas e, por isso, doentes de afagos.

4 A MOÇA TECELÃ, UMA PENÉLOPE, UMA IMAGEM DA MULHER NA CONTEMPORANEIDADE

    Como podemos evidenciar os fios do inconformismo é o timão que direciona a literatura de autoria feminina quando esta repensa o mito de Penélope. Destarte, são com esses fios que a escritora Marina Colasanti não deixa de apropriar-se da imagem daquela que com fios de inconformismo tece a própria vida.
     A escritora brasileira, por sua vez, ao escrever A moça tecelã, obra publicada em 2004, propõe um deslocamento do mito de Penélope que, diferentemente daquele encontrado nos versos de Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, cujo deslocamento restringe-se a uma tomada de consciência, em Colasanti apenas a tomada de consciência não é o suficiente, sendo necessário, portanto, exceder os limites do pensamento chegando à ação concreta.
   A moça tecelã é uma obra de caráter infanto-juvenil. No entanto, mesmo apresentando uma narrativa nos moldes dos contos de fada, um universo mágico, em que tudo é possível, em A moça tecelã o que temos, diferentemente da Penélope homérica que tece e destece à espera do seu Ulisses, é a imagem de uma princesa: “[...] a espera de seu príncipe ou de uma mulher diante do tear, cercada por quatro paredes, com marido e filhos e criados, é uma jovem solitária, mas autônoma que vive sua vida com tranquilidade” (SILVA 2012, p. 8).
      A autonomia conferida à personagem de Colasanti é tamanha que ela própria assume a criação de tudo que a cerca e de tudo o que tem necessidade:

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. (COLASANTI, 2004, 9).
     
     Como podemos perceber com base no fragmento supracitado, nada faltava à moça tecelã, já que, tudo que queria era possível conseguir bastando para tanto sentar-se frente ao tear e tecer. Entretanto, conforme nos mostra a narrativa de Colasanti, a moça tecelã, mesmo em face do “poder” do tear, levava uma vida simples em uma casa simples, tecendo dias e noites, a natureza e tudo à sua volta como bem lhe convinha.
     Diante da simplicidade da vida que leva a moça tecelã, não suportando mais a solidão dos dias, rende-se ao pensamento e ao desejo de companhia, tecendo para si um príncipe, como sempre sonhou. Tecido o príncipe com quem sonhou dividir seus dias, “pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais sua felicidade” (COLASANTI, p. 10).
    Com base no fragmento acima descrito, é válido abrir um parêntese para salientar que Marina Colasanti, ao apresentar a moça tecelã como aquela que sonha em dividir seus dias com um príncipe e com os filhos - o que aumentaria sua felicidade – parece querer fazer referência às “senhoras do lar”, mulheres confinadas a viverem enclausuradas no lar, cuidando do marido e dos filhos, “suposta razão da felicidade feminina”.
      O sonho da moça tecelã com dias felizes ao lado do príncipe e dos filhos que haveria de tecer é um sonho agora só seu, pois: “se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar” (COLASANTI, 2004, p. 12).
     Frente ao poder do tear o príncipe, contrariando os sonhos da moça tecelã, inclusive o de tecer para si filhos, incumbiu-a de tecer arduamente um suntuoso palácio: “E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre” (COLASANTI, 2004, p. 12). Entre seus sonhos estilhaçados e o tecer os anseios do marido, a moça tecelã, enclausurada entre quatro paredes da mais alta torre foi, aos poucos, se consumindo.
      Tomada por profunda tristeza, o que com o tempo pareceu-lhe maior que o suntuoso palácio, com todos os seus tesouros, a moça tecelã rende-se a pensar o quão seria bom estar sozinha novamente e então:

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. (COLASANTI, 2004, p. 14).

    Como podemos evidenciar, é no cair da noite que a moça tecelã começa a destecer tudo o que o príncipe lhe incumbira de tecer. Neste aspecto, percebe-se claramente que a moça tecelã, equipara-se à Penélope homérica, que no cair da noite, destece tudo o que tecera durante o dia, e, nisso, revela-se mais astuta que Ulisses.
     Após destecer o palácio juntamente com todos os seus tesouros:

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. (COLASANTI, 2004, p. 14).

     Destecido o marido, finda a tristeza da moça tecelã, e ela novamente, viu-se na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
    Diferente das Penélopes apresentadas por Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, a moça tecelã de Marina Colasanti, como podemos inferir a partir de pensamento de Silva (2012, p. 10), inicia seu percurso como alguém autônoma, numa perspectiva mais contemporânea, uma mulher profissional que conduz sua própria vida, eis a grande metáfora do árduo exercício de tecer e, mesmo sendo enredada pelo engano, retoma o controle de sua vida, destecendo a própria tristeza.
     Se nas Penélopes apresentadas por Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, o deslocamento do mito de Penélope consiste numa tomada de consciência, desencadeando uma luta interior, motivada, é claro, pelo inconformismo diante das limitações impostas à mulher por uma sociedade imbuída de rígidos valores de gênero, construídos socialmente, em Colasanti, como já prenunciado, apenas essa tomada de consciência e essa batalha interior contra as limitações impostas à mulher parece não ser o suficiente, sendo necessário, portanto, exceder os limites do pensamento e agir. Assim sendo, concluímos que a moça tecelã de Colasanti, conforme aponta Silva (2012, p. 10), estabelece uma imagem mais próxima do atual estado das lutas feministas na sociedade. Portanto, é possível concluir que os atributos sociais, tradicionalmente demarcados para essas representações, são deslocados pela moça tecelã, ao remover a rigidez das barreiras que limitam sua ação, apontando para a mobilidade de todo e qualquer valor previamente imposto.
    Diante das discussões aqui apresentadas, nos sentimos convidados a repensar, a partir da reelaboração do mito grego, apresentado pelas poetizas: Myriam Fraga, Maria Tereza Horta e Marina Colasanti, outro lugar para Penélope, marcado não pela espera, e sim, pelo inconformismo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

       Diante de tudo o que foi discutido neste artigo, concluímos que o modo como o mito foi utilizado pela literatura desde a Idade Média, tendo seus sentidos cristalizados e perpetuados, moldando socialmente uma mulher e um homem, segundo modelos idealizados, é na contemporaneidade revisto e reelaborado pelas novas poéticas.
      Assim sendo, ao deslocar a personagem homérica, Penélope, do seu lugar de origem, fruto do pensamento falocêntrico, a poesia de autoria feminina, aqui representada pelas três autoras supracitadas, engendrando imagens de mulheres, a partir da ótica e do pensamento feminino, propõe uma verdadeira revisão dos mitos, atuando no interior do discurso patriarcalista, de modo a apresentar na contemporaneidade, contradiscursos, ressignificando, não só o lugar, mas também o papel da mulher na literatura e na sociedade.

REFERÊNCIAS

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. São Paulo: Global, 2004.
COLLING, Ana. A construção histórica do feminino e do masculino. In: STREY,
Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, Denise (Org.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
FRAGA, Myriam. Poesia reunida. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2008.
HORTA, Maria Tereza. Publicações Dom Quixote. Cem. Alfragide. Portugal, 2009.
PERROT, M. Mulheres públicas. São Paulo: Editora Unesp, 1998.
SILVA, Ricardo Nonato Almeida de Abreu. Novas penélopes: a rasura de um mito na literatura de autoria feminina. Disponível em:
Acesso em: 25 ago. 2012, 10:23:15.
SILVA, Ricardo Nonato Almeida de Abreu. Penélope na poesia de Myriam Fraga: um arquétipo (des)construído. Disponível em:
Acesso em: 25 ago. 2012, 10:28:23.
WELZER-LANG, Daniel. A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia. Disponível em: Acesso em: 22 nov. 2013, 09:16:23.
VIANNA, Alexander Martins. Sexo, Cultura & Política. Disponível em: Acesso em: 20 nov. 2013, 10:30:25.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Capitalismo

A inquietante inquietude
De uma era me rouba o sono
Ânsia incansável para ocupar um
trono

O pode tudo,
A concorrência,
Turbulenta humanidade
(corrosiva fraternidade).

Rogério Martins
Aurora

Está decidido:
ao romper da aurora
despertarei
águia!

Rogério Martins
Sonho

Só os poetas
São capazes de ouvir
O leve toque
dos pés
nas nuvens.

Rogério Martins
D`África

Extirpado da raiz
Transladado sobre as águas do
Atlântico
Armazenado nos porões
Produto barato
Sob o olhar sanguinário de mil
Ratos.
Rogério Martins
(texto publicado no Circular: Círculo Poético de Xique-Xique, ISSN 22372563)

quarta-feira, 14 de março de 2012

INCESTO E SOCIEDADE: UMA ANÁLISE DA OBRA ÁLBUM DE FAMÍLIA, DE NELSON RODRIGUES

ROGÉRIO MARTINS DE CARVALHO

O presente ensaio pretende analisar a relação incestuosa da obra Álbum de família, do teatrólogo brasileiro Nelson Rodrigues, traçando um contraponto entre incesto e sociedade. Entendida como um microcosmo desta, Álbum de família vem desnudar uma sociedade que, envolta sob o véu das convenções sociais, tenta reprimir um dos mais recônditos impulsos inerentes ao homem, ou seja, o incesto.

Escrito em 1945 e só estreada 22 anos depois, em 29 de julho de 1967, no Teatro Jovem do Rio, por causa da total interdição da Censura, Álbum de família, tragédia que se seguiu a Vestido de noiva, dá início ao ciclo do teatro desagradável, ao passo que o próprio Nelson Rodrigues afirma: [...] Álbum de família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados, [...] são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de provocar o tifo e a malária na plateia (RODRIGUES apud MAGALDI 2004. p. 49).

Pestilenta, fétida, capaz, por si só, de provocar o tifo e a malaria na plateia. O que teria motivado Nelson Rodrigues a mencionar tais palavras sobre sua própria criação? Por que elogiar tão severamente algo que nasceu de suas entranhas psicológicas? O que tornou Álbum de família merecedora de tais adjetivos? Estes são alguns dos questionamentos que fazemos quando lemos a crítica do próprio autor sobre a obra. No entanto, basta penetrarmos à leitura das primeiras páginas da obra para logo nos darmos conta do porquê de tantos adjetivos:

Speaker (enquanto Jonas e Senhorinha estão imóveis) - Primeira página do álbum. 1900. Primeiro de Janeiro: os primos Jonas e D. Senhorinha, no dia seguinte ao do casamento. Ele 25 anos. Ela 15 risonhas primaveras. Vejam a timidez da jovem nubente. Natural – trata-se da noiva que apenas começou a ser esposa. (RODRIGUES 1946. p. 2).

No trecho supracitado, duas informações merecem especial atenção: a primeira é que o casamento se dá entre os primos Jonas e D. Senhorinha; a segunda é que D. Senhorinha tem apenas 15 anos de idade. Tais informações ganham relevância no momento em que introduz a obra, dando ao leitor uma prévia do que virá adiante.

Segundo Coutinho (2002. p. 335), incesto significa: “união sexual ilícita entre parentes muito próximos”. Dito isto, notamos que o casamento de Jonas e D. Senhorinha se concretiza um incesto, pois os mesmos são primos e o casamento entre eles pressupõe sexo. Marcada por uma relação incestuosa desde sua formação, a família do casal vai desconsertar o leitor/espectador que, sob o véu das convenções sociais, reprime a tudo o que a elas se opõem.

A idade da jovem nubente de apenas 15 anos não passa despercebida aos olhos de um espectador/leitor atento. A idade de Senhorinha, apontada logo no início da obra, parece proposital, uma vez que denota o fascínio de Jonas por mocinhas que vai perdurar desde o seu casamento até sua morte, quando não suportando a perda da sua filha (Glória), por quem alimentava um forte desejo, prefere a morte a ter que viver sem a sua Glória. Casamento entre parentes, a esposa, uma garota de apenas 15 quinze anos. Está armada a trama que dará luz à intrigante tragédia Álbum de família:

Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação, pois a partir de Álbum de família [...] enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito (RODRIGUES apud MAGALDI 2004. p. 49).

O que há de tão intrigante nesta tragédia que teria levado Nelson Rodrigues a reconhecer que a mesma o fez enveredar por um caminho que certamente o levaria a qualquer destino, menos ao êxito? Não é preciso muito para se chegar a uma resposta a tal questionamento, bastando para tanto darmos continuidade à leitura da obra para, então, percebermos a causa de tanto pessimismo.

Gostaríamos de abrir um parêntese para fazer algumas colocações a título de reflexão. Numa visão cristã, poderíamos dizer que o casamento é algo sagrado, instituído por Deus para povoar a terra. Dito isto, perguntamos, o que teria feito os filhos e filhas de Adão e Eva (primeiro casal da raça humana) para cumprir a nobre missão de povoar a terra? Esta interrogação, certamente, muitos de nós já fizemos, e, possivelmente, muitos de nós acreditamos que para cumprir a missão de povoar a terra foi necessária uma relação incestuosa entre os membros da família primogênita.

Se a primeira família é fruto ou não de uma relação incestuosa, isso não vem ao caso, não é nossa intenção discutir tal aspecto, no entanto, é possível supor que, se a nossa sociedade reprime tal relação, é graças às convenções sociais que, agindo sobre o consciente de cada indivíduo inibe suas ações, ditando, portanto, o que este pode e o que não pode fazer para viver em sociedade. Sendo assim, podemos concluir que, possivelmente, um dos motivos pelo qual o homem não comete maiores atrocidades seja, justamente, o temor à repressão social.

Mas até que ponto, nós, mesmo diante de uma sociedade, que dita erros e acertos, podemos reprimir nossos impulsos sexuais? Acreditado ser esta a grade proposta lançada por Nelson Rodrigues. Folheemos o Álbum de família na tentativa de desvelar esta sociedade que, sob o véu das convenções, insiste em camuflar suas facetas.

Se a nossa suposição de que os membros da primeira família estabeleceram entre si uma relação incestuosa, o que concretizaria o incesto como algo inerente à sociedade (ao homem) desde os primórdios de sua formação, então não haveria motivos para maiores estranhamentos (por parte da sociedade) quando Nelson Rodrigues resolve colocar, em sua obra, uma mãe que se relaciona sexualmente com o filho, um pai que não esconde seu desejo pela filha e vice-versa, um irmão que se apaixona pela irmã e assim sucessivamente.

Segundo Magaldi (2004), “desde que aceitas as regras do jogo social, o homem reprimiu anseios e criou tabus”. Acreditamos estar aí uma das razões que levou Álbum de família a se tornar uma obra causadora de tanto estranhamento, provocando o tifo e a malaria na plateia, pois, uma vez, a família de Jonas e D. Senhorinha não aceitando as regras do jogo social, vai desconstruir tabus, vomitando a profunda natureza humana, avessa a quaisquer padrões.

Não podemos nos esquecer que Álbum de família se apresenta como um microcosmo da sociedade, a mesma sociedade cuja mídia não se cansa em noticiar: pais mantendo filhas prisioneiras de seu assédio sexual, chegando ao ponto de gerar filhos com elas. Portanto, torna-se evidente que, ao problematizar a relação incestuosa da família de Jonas e Senhorinha, Nelson Rodrigues não faz outra coisa, senão desnudar a sociedade, mostrando-lhe que ela própria traz em si aquilo que ela reprime, expele, ou seja, o incesto.

Ao referir-se a Nelson Rodrigues, afirma Magaldi (2004. p. 51): “[...] o dramaturgo resolvera abolir a censura e desnudar o indivíduo, não encarando o incesto como fenômeno excepcional, mas o impulso mais recôndito da natureza humana”. Diante desta afirmação, começamos a perceber o porquê de Álbum de família ser considerada uma obra fétida, pestilenta, capaz de provocar o tifo e a malária na plateia.

Quem guarda segredos não quer tê-los revelados. Está aí uma afirmação que nos parece bem pertinente para pensarmos em tantos adjetivos lançados pelo próprio autor sobre sua obra. Reveladora de um dos segredos mais recônditos da natureza humana (incesto), Álbum de família não poderia esperar outra coisa, senão a forte censura, o escárnio, o desprezo da plateia.

Folheamos o Álbum da família de Jonas e D. Senhorinha e logo aparece a relação lésbica de Glória e Tereza no dormitório do internato de onde são expulsas. Juras de fidelidade e amor eterno são trocadas entre Glória e Tereza. Ao propor uma relação amorosa entre duas mulheres, Nelson Rodrigues viola as regras do jogo social que, pautadas numa visão patriarcalista, reprime a tudo o que a elas se opõem. Neste momento, podemos inferir que, com a personagem Glória, o teatrólogo dá à mulher a possibilidade de romper as barreiras da censura, externando, portanto, os mais ocultos desejos inerentes ao homem.

Imaginemos uma sociedade como a de 45, certamente, mais conservadora, preconceituosa e estereotipada do a que temos hoje. Inserida neste contexto, Glória é, sem dúvidas, a personagem de quem se utiliza o teatro rodriguiano para expor uma sociedade que, vítima ou não de suas próprias convenções, age com discriminação e repressão contra tudo o que difere de seus padrões conservadores. Com a relação amorosa de Glória e Tereza, no internato, percebemos um apontar de dedo para a sociedade como que querendo dizer-lhe: olha, vocês discriminam, reprimem, pois saibam que é, justamente, isso o que acontece nos bastidores, de modo que nem mesmo os irmãos de fé (cristãos) são poupados dos desejos carnais.

Vivemos numa sociedade cuja função dos pais, dentre muitas outras, consiste em educar, manter, zelar pela vida, amar e etc., o que não inclui sexo entre pais e filhos. No entanto, certamente, muitos de nós já presenciamos ou ouvimos relatos de famílias cujo pai mantinha relação sexual com a filha, o filho com a mãe, e assim por diante. Neste aspecto, Álbum de família, mais uma vez, desnuda a sociedade quando resolve problematizar o incesto de Jonas com a filha Glória e de D. Senhorinha com o filho Nôno.

O personagem seminarista, Guilherme ama sua irmã Glória. Mutilando-se por amor, procura, na castração, uma solução para não cometer o pecado de possuir a irmã. Imaginemos uma relação amorosa entre dois irmãos. Agora imaginemos um destes irmãos sendo padre. Para uma sociedade “conservadora dos valores morais” como a nossa, dá até para imaginar a represália a ser enfrentada por ambos. Pois bem, a narrativa da obra não nos dá margem para perceber uma relação amorosa (sexual) entre Guilherme e Glória, no entanto, a narrativa nos permite afirmar que havia em Guilherme uma um forte desejo de possuir a irmã:

Guilherme – [...] Você sabe por que eu fui ser padre?
Glória – Não interessa!
Guilherme – Por sua causa! Você era garota naquele tempo... Mas eu não podia ver você, só pensava em você...
Glória – Agora estou vendo porque é que você quis que eu secasse a roupa e desse para você espremer.
Guilherme não foi por isso, juro! Você diz isto porque não sabe que tive um acidente... voluntário! Já não sou como antes. (RODRIGUES, 1946. p 12).

O que levaria um seminarista (padre) apaixonado pela irmã a mutilar-se, extirpando aquilo que para o homem representa o ser macho, viril? Talvez o receio à represália social seja uma boa resposta, afinal de contas, há de convir que um padre precisa ser um indivíduo socialmente íntegro, correto, seguidor exemplar das regras e convenções impostas pela nossa sociedade.

Com base no trecho da obra citado anteriormente, podemos inferir, a partir do diálogo entre os irmãos, que, nem mesmo a mutilação foi suficiente para reprimir o desejo de Guilherme em possuir a irmã Glória. Sendo assim, percebemos, mais uma vez, Nelson Rodrigues cutucar a sociedade, num instante em que, utilizando-se do personagem Guilherme, que mesmo mutilando-se não consegue sanar o desejo de possuir a irmã, propõe ao espectador (sociedade) que, por mais que o homem se mutile, e que a sociedade atue com repressão, ainda assim, não será possível reprimir o anseio sexual humano, uma vez que este está na mente e não nos órgãos sexuais.

Como se não bastasse o incesto dos pais para com os filhos, do irmão para com a irmã, Nelson Rodrigues problematiza, ainda, a relação incestuosa do filho Edmundo que, não conseguindo livrar-se da paixão que sente pela mãe, retorna ao lar depois de se separar da esposa Heloísa. Se parássemos apenas um instante para pensar em como a sociedade trataria alguém como Edmundo que, deixando o amor da esposa, volta para casa na expectativa de vivenciar a paixão que sente pela mãe, no mínimo, chegaríamos a algumas conclusões, possivelmente, drásticas (Um animal! Um bicho! Um louco! e etc.).

Diante do exposto, reforçamos nossa compreensão acerca do porquê de Álbum de família ser considerada pelo próprio autor como uma obra capaz de provocar o tifo e a malária na plateia. Pestilenta e fétida, mais uma vez a tragédia vai chocar a plateia/espectador quando, despindo a sociedade, escancara aquilo que o homem (graças às regras do jogo social) insiste em camuflar: o incesto.

Finalmente, para completar o ciclo incestuoso do Álbum da família de Jonas e D. Senhorinha, Nelson Rodrigues, utilizando-se da personagem Tia Rute, irmã solteirona e feia (sem o menor encanto sexual) de D. Senhorinha, que por gratidão a uma noite de amor, arranja menininhas para Jonas desvirginar, abre caminho para a discussão em torno da relação amorosa de duas irmãs com um único homem.

Ao propor tal discussão a tragédia rodrigueana, desnuda a sociedade, evidenciando o sexo como um dos desejos mais imponentes da natureza humana, cujo homem, não respeitando o espaço do outro, não mede esforços para sanar tal desejo. Sentimos ainda na relação incestuosa da tríade, mais um apontar de dedo para a sociedade, denunciando aquilo que, segundo Plutarco : “é a curiosidade do amor e dos prazeres ilícitos”, o adultério, como algo inerente ao homem.

Com uma família cuja mãe (D. Senhorinha) relaciona-se sexualmente com o filho louco (Nôno); um pai (Jonas) que desvirgina meninas em casa, em virtude do desejo que sente pela filha (Glória); um filho (Edmundo) que retorna ao lar após separar-se da mulher (Heloisa), por não conseguir esquecer a paixão que sente pela mãe; um primogênito e aprendiz de padre (Guilherme), que não se livra do desejo de possuir a irmã (Glória), nem mesmo mutilando-se; uma filha caçula (Glória), expulsa do colégio interno após ter uma relação amorosa com a colega de quarto (Tereza) e uma tia (Rute), irmã solteirona e feia de dona D. Senhorinha. O teatrólogo Nelson Rodrigues conduz o espectador no folhear de um Álbum de família, cujas primeiras impressões se mostram estranhas e, aos poucos, o espectador vai conhecendo o verdadeiro protagonista do Álbum: o incesto.

Ao revelar o verdadeiro protagonista do Álbum de família, Nelson Rodrigues, desnudando a sociedade, faz o espectador olhar com lupa situações que costumeiramente passam despercebidas no quotidiano, ao passo que o encadeamento de relações incestuosas e conflitantes da família de D. Senhorinha e Jonas revelam, ao espectador, uma condição inerente ao ser humano, mas que, por causa da sociedade e suas convenções, foi, e, possivelmente, tem sido jogada para baixo do tapete.

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, Nelson. Álbum de família, tragédia em três atos.
Disponível em: http://www.helderdarocha.com.br/teatro/nelson/album/AlbumDeFamilia_texto_02.pdf Acesso em: 22 dez. 2011, 10:15:23.

MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues – São Paulo. Ed. Global, 2004.

COUTINHO, Anailza. Mini Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Editora Casa da Letras. 2 ed. - S. Paulo: 2002.

PLUTARCO, O adultério é a curiosidade do amor e dos prazeres ilícitos. Disponível em: http://www.citador.pt/frases/o-adulterio-e-a-curiosidade-do-amor-e-dos-prazere-plutarco-8645 Acesso em: 25 dez. 2011, 14:25:15.

ÁLBUM de família, de Nelson Rodrigues. Disponível em: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/album_de_familia Acesso em: 23 dez. 2011, 26:31:45.