Rogério Martins de Carvalho
Com a ironia você sai do reino
do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso – de
maneiras que vão muito além do que sugere o uso desses termos na teoria dos
atos da fala. A ironia remove a certeza de que as palavras signifiquem apenas
o que elas dizem. (HUTCHEON apud
ALAVARCE, 2009, p. 46).
Este ensaio pretende analisar a função da ironia presente nas palavras do Padre Antônio Vieira, ao proferir o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Nascido em Lisboa, no ano de 1608, Antônio Vieira, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo, foi um religioso, escritor e orador português que lutou contra a escravidão dos índios e defendeu a liberdade religiosa, num tempo em que os suspeitos de heresia eram condenado pela inquisição. Em 1614, com seis anos de idade, Antônio Vieira chega com sua família ao Brasil. Entrou para o Companhia de Jesus e ainda noviço foi indicado para redigir a carta com os relatos das atividade dos jesuítas, enviada anualmente a seus superiores em Lisboa. Dedicando sua vida à atividade religiosa, Padre Antônio Vieira morre em Salvador, Bahia, no ano de 1697.
Proferido na cidade de São Luís do Maranhão, em 1654, contra os colonos portugueses
no Brasil, o Sermão de Santo António aos Peixes constitui-se em um
documento da surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Padre António
Vieira. Ao tomar vários peixes (o roncador, o pegador, o voador e o polvo) como
símbolos dos vícios daqueles colonos, o texto de Vieira apresenta uma
construção literária e argumentativa, indiscutivelmente, notável. Em síntese, o
sermão pretende louvar algumas virtudes humanas e, principalmente, censurar com
severidade os vícios dos colonos. Entretanto, a maneira como o autor faz isso é que
merece nossa atenção, uma vez que, utilizando-se de uma linguagem imbuída de
ironia, convida o leitor a perceber, na urdidura da palavra, a intenção do
texto.
Como já prenunciado, o texto de Vieira reveste-se de uma linguagem
irônica para a partir daí externar sua real intenção. Nesta direção, julgamos
necessário pensar na etimologia da palavra ironia, a fim de melhor compreendermos
a função desta no Sermão de Santo Antônio
aos Peixes. Segundo Alavarce (2009), “[...] a palavra ironia provem do
termo latino dissimulatio. (p, 29). E
ressalta a autora: “é importante não perder de vista que a raiz grega eironeia indica dissimulação e
interrogação (p. 47). Como podemos observar, do ponto de vista semântico, a
palavra ironia, tanto na raiz grega quanto latina, assume o significado de dissimulação. Entretanto, a raiz grega complementa a carga semântica da palavra,
atribuindo-lhe ainda a significação de interrogação.
Semanticamente a palavra ironia, de origem grega, mostra-se mais abrangente
e, por isso mesmo, mais propícia para o nosso trabalho. Pois, se por um lado a
ironia assume o sentido de dissimulação – divisão ou contraste de sentido; por
outro, ela assume o sentido de interrogação – questionar, julgar. É sobre esse
prisma que a ironia aparece no texto de Vieira.
O sentido de ironia enquanto dissimulação e interrogação pode ser percebido
logo na introdução (exórdio) do sermão, momento em que
Vieira, obedecendo à estrutura deste, inicia sua pregação citando e comentando
um trecho bíblico:
Vós, diz Cristo Senhor nosso,
falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra,
porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a
corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo
tantos nela que tem o ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta
corrupção? (VIEIRA, 2013, p. 02).
A maneira como Antônio Vieira, em seu texto, censura os vícios dos
colonos e critica alguns comportamentos do homem é que merece a atenção do
leitor. No trecho supracitado, por exemplo, é preciso um olhar atento às
entrelinhas para perceber a ironia, o contraste de sentidos instaurados no
instante em que o sal e seu efeito de impedir a corrupção (putrefação) é tomado
como metáfora da palavra de Deus, que por sua vez, quando pregada, ouvida e
praticada, impede a corrupção humana. Vieira lança mão de uma linguagem
revestida de ironia nos permitindo perceber, na urdidura de suas palavras, que
a corrupção humana reside na falta de compromisso do homem para com a palavra
de Deus.
Esta afirmação fundamenta-se quando, ainda na introdução da obra, o
autor se põe a questionar, ironicamente, o efeito do sal que não salga,
referindo-se à negligência dos pregadores para com a palavra de Deus, e da
terra que não se deixa salgar, referindo-se aos ouvintes que não dão ouvidos ao que está sendo pregado:
Ou é porque o sal não salga,
ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores
não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os
ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é
porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou
porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que
eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores
se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os
ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. (VIEIRA, 2013, p.
02).
Convicto de sua função de sal, pregando a verdadeira doutrina e, ciente
de que a terra não se deixaria salgar, ou seja, de que o homem (na pessoa dos
colonos) não daria ouvidos às suas palavras, Antônio Vieira decide, então,
direcionar sua pregação aos peixes. Não nos parece arbitrário afirmar que nesta
decisão reside a “grande ironia” do texto de Vieira. Haja vista que uma leitura minuciosa das entrelinhas do sermão nos permite projetar a ironia do autor
frente à irreverência dos colonos em relação à palavra de Deus. Desta forma, já
que os homens não querem me ouvir, então vou pregar aos peixes. É válido
observar que para perceber a ironia nas palavras do autor, no decorrer da obra,
faz-se necessário não perder de vista que os peixes para quem direciona sua
pregação são metáforas de pessoas.
Iniciando sua pregação aos peixes, e, novamente
sendo fiel à estrutura do sermão, padre Antônio Vieira propõe logo no início do
desenvolvimento (parte dedicada à exposição e confirmação), que vai do capitulo
II ao V, a divisão do sermão aos peixes em dois pontos: “no primeiro
louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos
vícios”. E observa Vieira: “e desta maneira satisfaremos às obrigações do sal,
que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.”
(VIEIRA, 2013, p. 05).
É preciso um olhar atento para perceber, numa “simples” observação, a
carga de ironia por trás de cada palavra pronunciada por Vieira. No trecho supracitado,
a observação feita por ele aponta, ironicamente, para a ideia de que é preciso
ser como o sal, é preciso impedir a corrupção humana, o que só pode ser feito
em vida e não depois de morto.
Os louvores aos peixes acontecem dentro da obra em dois momentos. Primeiro,
Antônio Vieira expõe os louvores em geral, depois faz uma exposição dos
louvores em particular. Dos louvores em geral, um merece nossa atenção, não
porque ele seja mais ou menos importante do que os demais, mas, porque
acreditamos conter neste, uma certa ironia ao comportamento (dos colonos) humano:
“[...] tem os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.”
(VIEIRA, 2013, p. 04). Ao elogiar estas duas boas qualidades de ouvintes dos
peixes, Vieira apropria-se das mesmas para, de forma irônica, tecer uma crítica
às conversações das pessoas (colonos) durante o sermão.
Ao expor
os louvores em particular, Padre Antônio Vieira toma quatro peixes como
merecedores dos seus mais sinceros louvores: o Santo Peixe de Tobias, cujo fel
era bom para curar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios; a
Rémora, que ao se pegar ao leme de uma nau da Índia, a prende e amarra mais que
as próprias âncoras, não podendo esta mover-se, ir adiante; o Torpedo, capaz de
fazer tremer o braço do pescador ao picar a isca; e o Quatro Olhos, que tem o
privilégio de possuir dois olhos direcionados para cima, livrando-se da aves e outros
dois direcionados para baixo, livrando-se dos outros peixes.
Diante da
notável construção literária e argumentativa do padre Antônio Vieira, podemos
inferir que a escolha dos peixes, merecedores de louvores em particular, não ocorre
dentro da obra, de maneira aleatória, pelo contrário, percebemos ali uma
escolha proposital com tudo muito bem arquitetado.
Ao louvar
o Santo Peixe de Tobias, por exemplo, cujas entranhas servira para expulsar os
demônios da casa de Tobias e curar a cegueira de seu pai, faz-se necessário não
dispersarmos o olhar durante a leitura para, então, percebemos o fio de ironia
presente nas palavras do autor. É no interior do Santo Peixe de Tobias que
habita a sua grandeza. Ironicamente, Padre Antônio Vieira apropria-se deste
peixe para despertar a atenção do homem (dos colonos) acerca da necessidade de
velar pelas virtudes interiores, pois nelas consiste a verdadeira grandeza. Ao
louvar a Rémora, percebemos nas entrelinhas do texto de Vieira uma ironia no
sentido que o homem precisa impor limites aos seus ímpetos, e, movido pela
razão, não se deixar dominar pela fúria das paixões, nem pela soberba. É
preciso buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção.
Ao louvar
o Torpedo por sua nobre capacidade de fazer tremer o braço do pescador, Vieira
apropria-se da qualidade deste peixinho para, ironicamente, questionar acerca
da necessidade do homem tremer diante da palavra de Deus. Padre Vieira, portanto,
propõe ao homem o arrependimento e a conversão a Deus.
Do louvor
ao peixe Quatro Olhos, podemos extrair do pensamento irônico de Padre Antônio
Vieira uma crítica ao comportamento humano que, sujeitando-se às vaidades
terrenas, volta seus olhos somente para baixo e, preocupados com as coisas
desta terra, deixa de voltar seus olhos para o Céu, não se preocupando,
portanto, em agradar a Deus. Para Vieira, ao homem compete não se deixar
dominar pelos vícios desta terra, de modo que tais vícios corroborem para sua
cegueira em relação à palavra divina.
Como
podemos observar, mesmo quando o Padre Antônio Vieira parece estar,
simplesmente, enchendo o ego daqueles peixinhos com seus mais sinceros
louvores, suas palavras surgem revestidas de ironia em relação ao comportamento
humano que, deixando de assumir sua função de sal da terra, agem com
irreverência para com a palavra e a vontade de Deus.
“Antes,
porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora
as vossas repreensões.” (VIEIRA, 2013, p. 14). Assim começa o IV Capítulo da
obra. Capítulo dedicado, como a própria introdução denota, às repreensões de
Padre Antônio Vieira aos peixes. Da mesma forma que os louvores, as repreensões
também ocorrem em dois momentos. Primeiro, Padre Vieira faz uma repreensão em
geral e depois se apropria de quatro peixes distintos repreendendo-os em
particular. Assim sendo, podemos destacar pelo menos três repreensões em geral:
[...] é que
vos comeis uns aos outros. [...] Não só vos comeis uns aos outros, senão que os
grandes comem os pequenos. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande
para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem
pequenos, nem mil, para um só grande. (VIEIRA, 2013, p. 14).
É
possível observar que estas três repreensões caminham na mesma direção: criticar
o fato dos peixes comerem uns aos outros. Já que não podemos deixar de inferir
que há nestas sábias e críticas palavras uma ironia ao comportamento humano. É
preciso estar atento às entrelinhas para conseguirmos perceber, nas palavras do
autor, qual a função da ironia ali instaurada.
Utilizando-se
de um pensamento de Santo Agostinho, o próprio Vieira dá ao leitor uma prévia
de sua intenção ao repreender os peixes em geral: “os homens, com suas más e
perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que comem uns aos outros.” (VIEIRA,
2013, p. 14). Como podemos observar, a função da ironia, neste momento, é
questionar a cobiça, a ganância e a sede de poder entre os homens enquanto molas
propulsoras para que estes, assim como os peixes, devorem-se, digladiem-se.
Após
repreender os peixes em geral, Vieira parte para as repreensões em particular.
Para tanto, elenca o autor quatro peixes aos quais direciona suas irônicas
palavras. São eles: os Roncadores, sendo estes tão pequenos, merecem repreensão
por serem as roncas do mar; os Pegadores, repreendidos porque sendo pequenos não
só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam as costas, jamais
se desgrudam; os Voadores, que não se contentando com o mar e com o nadar,
merecem repreensão por quererem voar; o Polvo, digno de ser repreendido por ser
o maior traidor dos mares.
Ao repreender os Roncadores por
sua capacidade de, sendo peixes tão pequenos, serem as roncas do mar, Padre
Antônio Vieira abre caminho para inferirmos, a partir de suas palavras, que ele
tece uma ironia ao comportamento humano, já que, muitas vezes, o homem ocupa-se
do muito falar e do pouco ouvir e praticar.
Não podemos nos esquecer de que
Vieira é padre, razão pela qual acreditamos que sua ironia em relação aos
roncadores segue na direção de criticar, não só os falatórios por parte dos
colonos durante o sermão, como também, no sentido de que ao homem compete não
se deixar conduzir pela arrogância e soberba motivado, muitas vezes, pelo muito
poder e o muito saber, evitando, portanto, a ostentação e os vãos falatórios.
Desta forma, Vieira propõe ao homem que melhor do que blasonar é calar-se e deixar
que seus atos falem.
Quanto aos Pegadores, repreendidos
por sua ação “parasita”, já que ao pegar às costas dos peixes maiores lhes pega
e jamais se desgrudam, Vieira nos permite perceber, em suas palavras, uma ironia
ao comportamento humano que, na maioria das vezes, não hesita em usurpar os
favores oriundos do poder e das riquezas do outro tornando-se dependente das providências
deste, vivendo à mercê de seus favores e defendendo, veementemente, seus
interesses. Neste momento, percebemos que, ironicamente, Vieira não abre mão de
propor ao homem a necessidade de depender de Deus e não do próprio homem. Caso
contrário, perecendo o homem, perecerão também todos os que dele depende. Nesta
direção, reforça Vieira: “Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me
quero pegar a Deus.” (VIEIRA, 2013, p. 23).
Com os Voadores, que não
contentando com o mar e com o nadar querem voar, Padre Antônio Vieira
possibilita-nos, enquanto leitores, perceber nas entrelinhas do seu texto uma
crítica à ambição humana, pois como ressalta o próprio Vieira: “Quem quer mais
do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.” (VIEIRA, 2013, p 24).
O polvo
por sua vez:
[...] com aquele seu capelo na cabeça, parece um
monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não
ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo
desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, [...] o dito polvo
é o maior traidor do mar. (VIEIRA, 2013, p. 26).
Ao
apropriar-se do maior traidor dos mares, capaz de camuflar sua própria
aparência, armando ciladas para capturar sua presa, Antônio Vieira, mais uma
vez, tece uma ironia ao comportamento humano. Para Vieira, há na terra, assim
como nos mares, falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas. Entretanto,
é na terra que estão as maiores e mais perniciosas traições, pois é na terra
que habita o homem com toda a sua sorte de corrupção.
Diante do
exposto, podemos concluir que a funções da ironia em Vieira é, sobretudo, criticar
o comportamento dos colonos e, consequentemente, o comportamento humano, já que,
entregues a uma vida de corrupção, não assumem na terra a sua função de sal, de
tal maneira que não salgam com suas vidas de vícios, soberba, ganância e arrogância
e nem se deixam salgar, tornando-se irreverentes para com a verdadeira
doutrina, capaz de inibir a corrupção humana, a palavra de Deus.
Assim
sendo: “Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão
em Graça e Glória” (VIEIRA, 2013, p. 30). Assim conclui Padre Vieira o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Há,
nestas últimas palavras do autor, certo tom de ironia que caminha na direção de
externar sua revolta para com os “peixes da terra”, de modo que estes, não
assumindo a função de sal na terra, não dando ouvidos à palavra de Deus, nem
deixando para trás os vícios, a corrupção, não são, portanto, merecedores de
graça, nem glória, e muito menos de louvores como foram os peixes do mar.
Diante do exposto, podemos concluir este trabalho salientando que o Sermão
de Santo Antônio aos Peixes é, na urdidura da palavra, uma ironia ao
comportamento humano.
REFERÊNCIAS
ALAVARCE, Camila da Silva. A
ironia e sua refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso.
São Paulo. Cultura Acadêmica, 2009.