domingo, 26 de janeiro de 2020

SERMÃO DE SANTO ANTÔNIO AOS PEIXES: NA URDIDURA DA PALAVRA, UMA IRONIA AO COMPORTAMENTO HUMANO


Rogério Martins de Carvalho
 
Com a ironia você sai do reino do verdadeiro e do falso e entra no reino do ditoso e do desditoso – de maneiras que vão muito além do que sugere o uso desses termos na teoria dos atos da fala. A ironia remove a certeza de que as pala­vras signifiquem apenas o que elas dizem. (HUTCHEON apud ALAVARCE, 2009, p. 46).

Este ensaio pretende analisar a função da ironia presente nas palavras do Padre Antônio Vieira, ao proferir o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Nascido em Lisboa, no ano de 1608, Antônio Vieira, filho de Cristóvão Vieira Ravasco e Maria de Azevedo, foi um religioso, escritor e orador português que lutou contra a escravidão dos índios e defendeu a liberdade religiosa, num tempo em que os suspeitos de heresia eram condenado pela inquisição. Em 1614, com seis anos de idade, Antônio Vieira chega com sua família ao Brasil. Entrou para o Companhia de Jesus e ainda noviço foi indicado para redigir a carta com os relatos das atividade dos jesuítas, enviada anualmente a seus superiores em Lisboa. Dedicando sua vida à atividade religiosa, Padre Antônio Vieira morre em Salvador, Bahia, no ano de 1697.

Proferido na cidade de São Luís do Maranhão, em 1654, contra os colonos portugueses no Brasil, o Sermão de Santo António aos Peixes constitui-se em um documento da surpreendente imaginação, habilidade oratória e poder satírico do Padre António Vieira. Ao tomar vários peixes (o roncador, o pegador, o voador e o polvo) como símbolos dos vícios daqueles colonos, o texto de Vieira apresenta uma construção literária e argumentativa, indiscutivelmente, notável. Em síntese, o sermão pretende louvar algumas virtudes humanas e, principalmente, censurar com severidade os vícios dos colonos. Entretanto, a maneira como o autor faz isso é que merece nossa atenção, uma vez que, utilizando-se de uma linguagem imbuída de ironia, convida o leitor a perceber, na urdidura da palavra, a intenção do texto.

Como já prenunciado, o texto de Vieira reveste-se de uma linguagem irônica para a partir daí externar sua real intenção. Nesta direção, julgamos necessário pensar na etimologia da palavra ironia, a fim de melhor compreendermos a função desta no Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Segundo Alavarce (2009), “[...] a palavra ironia provem do termo latino dissimulatio. (p, 29). E ressalta a autora: “é importante não perder de vista que a raiz grega eironeia indica dissimulação e interrogação (p. 47). Como podemos observar, do ponto de vista semântico, a palavra ironia, tanto na raiz grega quanto latina, assume o significado de dissimulação. Entretanto, a raiz grega complementa a carga semântica da palavra, atribuindo-lhe ainda a significação de interrogação.

Semanticamente a palavra ironia, de origem grega, mostra-se mais abrangente e, por isso mesmo, mais propícia para o nosso trabalho. Pois, se por um lado a ironia assume o sentido de dissimulação – divisão ou contraste de sentido; por outro, ela assume o sentido de interrogação – questionar, julgar. É sobre esse prisma que a ironia aparece no texto de Vieira.

O sentido de ironia enquanto dissimulação e interrogação pode ser percebido logo na introdução (exórdio) do sermão, momento em que Vieira, obedecendo à estrutura deste, inicia sua pregação citando e comentando um trecho bíblico:

Vós, diz Cristo Senhor nosso, falando com os pregadores, sois o sal da terra: e chama-lhes sal da terra, porque quer que façam na terra o que faz o sal. O efeito do sal é impedir a corrupção, mas quando a terra se vê tão corrupta como está a nossa, havendo tantos nela que tem o ofício de sal, qual será, ou qual pode ser a causa desta corrupção? (VIEIRA, 2013, p. 02).

A maneira como Antônio Vieira, em seu texto, censura os vícios dos colonos e critica alguns comportamentos do homem é que merece a atenção do leitor. No trecho supracitado, por exemplo, é preciso um olhar atento às entrelinhas para perceber a ironia, o contraste de sentidos instaurados no instante em que o sal e seu efeito de impedir a corrupção (putrefação) é tomado como metáfora da palavra de Deus, que por sua vez, quando pregada, ouvida e praticada, impede a corrupção humana. Vieira lança mão de uma linguagem revestida de ironia nos permitindo perceber, na urdidura de suas palavras, que a corrupção humana reside na falta de compromisso do homem para com a palavra de Deus.

Esta afirmação fundamenta-se quando, ainda na introdução da obra, o autor se põe a questionar, ironicamente, o efeito do sal que não salga, referindo-se à negligência dos pregadores para com a palavra de Deus, e da terra que não se deixa salgar, referindo-se aos ouvintes que não dão ouvidos ao que está sendo pregado:

Ou é porque o sal não salga, ou porque a terra não se deixa salgar. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores não pregam a verdadeira doutrina; ou porque a terra não se deixa salgar, e os ouvintes, sendo verdadeira a doutrina que lhe dão, a não querem receber. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores dizem uma coisa e fazem outra; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes querem antes imitar o que eles fazem, que fazer o que dizem. Ou é porque o sal não salga, e os pregadores se pregam a si e não a Cristo; ou porque a terra se não deixa salgar, e os ouvintes, em vez de servir a Cristo, servem a seus apetites. (VIEIRA, 2013, p. 02).

Convicto de sua função de sal, pregando a verdadeira doutrina e, ciente de que a terra não se deixaria salgar, ou seja, de que o homem (na pessoa dos colonos) não daria ouvidos às suas palavras, Antônio Vieira decide, então, direcionar sua pregação aos peixes. Não nos parece arbitrário afirmar que nesta decisão reside a “grande ironia” do texto de Vieira. Haja vista que uma leitura minuciosa das entrelinhas do sermão nos permite projetar a ironia do autor frente à irreverência dos colonos em relação à palavra de Deus. Desta forma, já que os homens não querem me ouvir, então vou pregar aos peixes. É válido observar que para perceber a ironia nas palavras do autor, no decorrer da obra, faz-se necessário não perder de vista que os peixes para quem direciona sua pregação são metáforas de pessoas. 

Iniciando sua pregação aos peixes, e, novamente sendo fiel à estrutura do sermão, padre Antônio Vieira propõe logo no início do desenvolvimento (parte dedicada à exposição e confirmação), que vai do capitulo II ao V, a divisão do sermão aos peixes em dois pontos: “no primeiro louvar-vos-ei as vossas atitudes, no segundo repreender-vos-ei os vossos vícios”. E observa Vieira: “e desta maneira satisfaremos às obrigações do sal, que melhor vos está ouvi-las vivos, que experimentá-las depois de mortos.” (VIEIRA, 2013, p. 05).

É preciso um olhar atento para perceber, numa “simples” observação, a carga de ironia por trás de cada palavra pronunciada por Vieira. No trecho supracitado, a observação feita por ele aponta, ironicamente, para a ideia de que é preciso ser como o sal, é preciso impedir a corrupção humana, o que só pode ser feito em vida e não depois de morto.

Os louvores aos peixes acontecem dentro da obra em dois momentos. Primeiro, Antônio Vieira expõe os louvores em geral, depois faz uma exposição dos louvores em particular. Dos louvores em geral, um merece nossa atenção, não porque ele seja mais ou menos importante do que os demais, mas, porque acreditamos conter neste, uma certa ironia ao comportamento (dos colonos) humano: “[...] tem os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam.” (VIEIRA, 2013, p. 04). Ao elogiar estas duas boas qualidades de ouvintes dos peixes, Vieira apropria-se das mesmas para, de forma irônica, tecer uma crítica às conversações das pessoas (colonos) durante o sermão.

Ao expor os louvores em particular, Padre Antônio Vieira toma quatro peixes como merecedores dos seus mais sinceros louvores: o Santo Peixe de Tobias, cujo fel era bom para curar da cegueira e o coração para lançar fora os demônios; a Rémora, que ao se pegar ao leme de uma nau da Índia, a prende e amarra mais que as próprias âncoras, não podendo esta mover-se, ir adiante; o Torpedo, capaz de fazer tremer o braço do pescador ao picar a isca; e o Quatro Olhos, que tem o privilégio de possuir dois olhos direcionados para cima, livrando-se da aves e outros dois direcionados para baixo, livrando-se dos outros peixes.

Diante da notável construção literária e argumentativa do padre Antônio Vieira, podemos inferir que a escolha dos peixes, merecedores de louvores em particular, não ocorre dentro da obra, de maneira aleatória, pelo contrário, percebemos ali uma escolha proposital com tudo muito bem arquitetado.

Ao louvar o Santo Peixe de Tobias, por exemplo, cujas entranhas servira para expulsar os demônios da casa de Tobias e curar a cegueira de seu pai, faz-se necessário não dispersarmos o olhar durante a leitura para, então, percebemos o fio de ironia presente nas palavras do autor. É no interior do Santo Peixe de Tobias que habita a sua grandeza. Ironicamente, Padre Antônio Vieira apropria-se deste peixe para despertar a atenção do homem (dos colonos) acerca da necessidade de velar pelas virtudes interiores, pois nelas consiste a verdadeira grandeza. Ao louvar a Rémora, percebemos nas entrelinhas do texto de Vieira uma ironia no sentido que o homem precisa impor limites aos seus ímpetos, e, movido pela razão, não se deixar dominar pela fúria das paixões, nem pela soberba. É preciso buscar um equilíbrio entre a razão e a emoção.

Ao louvar o Torpedo por sua nobre capacidade de fazer tremer o braço do pescador, Vieira apropria-se da qualidade deste peixinho para, ironicamente, questionar acerca da necessidade do homem tremer diante da palavra de Deus. Padre Vieira, portanto, propõe ao homem o arrependimento e a conversão a Deus.

Do louvor ao peixe Quatro Olhos, podemos extrair do pensamento irônico de Padre Antônio Vieira uma crítica ao comportamento humano que, sujeitando-se às vaidades terrenas, volta seus olhos somente para baixo e, preocupados com as coisas desta terra, deixa de voltar seus olhos para o Céu, não se preocupando, portanto, em agradar a Deus. Para Vieira, ao homem compete não se deixar dominar pelos vícios desta terra, de modo que tais vícios corroborem para sua cegueira em relação à palavra divina.

Como podemos observar, mesmo quando o Padre Antônio Vieira parece estar, simplesmente, enchendo o ego daqueles peixinhos com seus mais sinceros louvores, suas palavras surgem revestidas de ironia em relação ao comportamento humano que, deixando de assumir sua função de sal da terra, agem com irreverência para com a palavra e a vontade de Deus.   

“Antes, porém, que vos vades, assim como ouvistes os vossos louvores, ouvi também agora as vossas repreensões.” (VIEIRA, 2013, p. 14). Assim começa o IV Capítulo da obra. Capítulo dedicado, como a própria introdução denota, às repreensões de Padre Antônio Vieira aos peixes. Da mesma forma que os louvores, as repreensões também ocorrem em dois momentos. Primeiro, Padre Vieira faz uma repreensão em geral e depois se apropria de quatro peixes distintos repreendendo-os em particular. Assim sendo, podemos destacar pelo menos três repreensões em geral:

[...] é que vos comeis uns aos outros. [...] Não só vos comeis uns aos outros, senão que os grandes comem os pequenos. Se os pequenos comeram os grandes, bastara um grande para muitos pequenos; mas como os grandes comem os pequenos, não bastam cem pequenos, nem mil, para um só grande. (VIEIRA, 2013, p. 14).

É possível observar que estas três repreensões caminham na mesma direção: criticar o fato dos peixes comerem uns aos outros. Já que não podemos deixar de inferir que há nestas sábias e críticas palavras uma ironia ao comportamento humano. É preciso estar atento às entrelinhas para conseguirmos perceber, nas palavras do autor, qual a função da ironia ali instaurada.

Utilizando-se de um pensamento de Santo Agostinho, o próprio Vieira dá ao leitor uma prévia de sua intenção ao repreender os peixes em geral: “os homens, com suas más e perversas cobiças, vêm a ser como os peixes que comem uns aos outros.” (VIEIRA, 2013, p. 14). Como podemos observar, a função da ironia, neste momento, é questionar a cobiça, a ganância e a sede de poder entre os homens enquanto molas propulsoras para que estes, assim como os peixes, devorem-se, digladiem-se.

Após repreender os peixes em geral, Vieira parte para as repreensões em particular. Para tanto, elenca o autor quatro peixes aos quais direciona suas irônicas palavras. São eles: os Roncadores, sendo estes tão pequenos, merecem repreensão por serem as roncas do mar; os Pegadores, repreendidos porque sendo pequenos não só se chegam a outros maiores, mas de tal sorte se lhes pegam as costas, jamais se desgrudam; os Voadores, que não se contentando com o mar e com o nadar, merecem repreensão por quererem voar; o Polvo, digno de ser repreendido por ser o maior traidor dos mares.

Ao repreender os Roncadores por sua capacidade de, sendo peixes tão pequenos, serem as roncas do mar, Padre Antônio Vieira abre caminho para inferirmos, a partir de suas palavras, que ele tece uma ironia ao comportamento humano, já que, muitas vezes, o homem ocupa-se do muito falar e do pouco ouvir e praticar.

Não podemos nos esquecer de que Vieira é padre, razão pela qual acreditamos que sua ironia em relação aos roncadores segue na direção de criticar, não só os falatórios por parte dos colonos durante o sermão, como também, no sentido de que ao homem compete não se deixar conduzir pela arrogância e soberba motivado, muitas vezes, pelo muito poder e o muito saber, evitando, portanto, a ostentação e os vãos falatórios. Desta forma, Vieira propõe ao homem que melhor do que blasonar é calar-se e deixar que seus atos falem.         

Quanto aos Pegadores, repreendidos por sua ação “parasita”, já que ao pegar às costas dos peixes maiores lhes pega e jamais se desgrudam, Vieira nos permite perceber, em suas palavras, uma ironia ao comportamento humano que, na maioria das vezes, não hesita em usurpar os favores oriundos do poder e das riquezas do outro tornando-se dependente das providências deste, vivendo à mercê de seus favores e defendendo, veementemente, seus interesses. Neste momento, percebemos que, ironicamente, Vieira não abre mão de propor ao homem a necessidade de depender de Deus e não do próprio homem. Caso contrário, perecendo o homem, perecerão também todos os que dele depende. Nesta direção, reforça Vieira: “Peguem-se outros aos grandes da terra, que eu só me quero pegar a Deus.” (VIEIRA, 2013, p. 23).

Com os Voadores, que não contentando com o mar e com o nadar querem voar, Padre Antônio Vieira possibilita-nos, enquanto leitores, perceber nas entrelinhas do seu texto uma crítica à ambição humana, pois como ressalta o próprio Vieira: “Quem quer mais do que lhe convém, perde o que quer e o que tem.” (VIEIRA, 2013, p 24).

O polvo por sua vez:

[...] com aquele seu capelo na cabeça, parece um monge; com aqueles seus raios estendidos, parece uma estrela; com aquele não ter osso nem espinha, parece a mesma brandura, a mesma mansidão. E debaixo desta aparência tão modesta, ou desta hipocrisia tão santa, [...] o dito polvo é o maior traidor do mar. (VIEIRA, 2013, p. 26).

Ao apropriar-se do maior traidor dos mares, capaz de camuflar sua própria aparência, armando ciladas para capturar sua presa, Antônio Vieira, mais uma vez, tece uma ironia ao comportamento humano. Para Vieira, há na terra, assim como nos mares, falsidades, enganos, fingimentos, embustes, ciladas. Entretanto, é na terra que estão as maiores e mais perniciosas traições, pois é na terra que habita o homem com toda a sua sorte de corrupção.

Diante do exposto, podemos concluir que a funções da ironia em Vieira é, sobretudo, criticar o comportamento dos colonos e, consequentemente, o comportamento humano, já que, entregues a uma vida de corrupção, não assumem na terra a sua função de sal, de tal maneira que não salgam com suas vidas de vícios, soberba, ganância e arrogância e nem se deixam salgar, tornando-se irreverentes para com a verdadeira doutrina, capaz de inibir a corrupção humana, a palavra de Deus.

Assim sendo: “Como não sois capazes de Glória, nem de Graça, não acaba o vosso Sermão em Graça e Glória” (VIEIRA, 2013, p. 30). Assim conclui Padre Vieira o Sermão de Santo Antônio aos Peixes. Há, nestas últimas palavras do autor, certo tom de ironia que caminha na direção de externar sua revolta para com os “peixes da terra”, de modo que estes, não assumindo a função de sal na terra, não dando ouvidos à palavra de Deus, nem deixando para trás os vícios, a corrupção, não são, portanto, merecedores de graça, nem glória, e muito menos de louvores como foram os peixes do mar. Diante do exposto, podemos concluir este trabalho salientando que o Sermão de Santo Antônio aos Peixes é, na urdidura da palavra, uma ironia ao comportamento humano.

REFERÊNCIAS                                                                                                                        

ALAVARCE, Camila da Silva. A ironia e sua refrações: um estudo sobre a dissonância na paródia e no riso. São Paulo. Cultura Acadêmica, 2009.

VIEIRA, Antônio. Sermão de Santos Antônio aos Peixes. Biblioteca Digital. Coleção Clássicos da Literatura Portuguesa. Porto Editora. 2013.