segunda-feira, 10 de setembro de 2018

IMAGENS DE MULHERES: O DESLOCAR DO MITO DE PENÉLOPE NA POESIA DE AUTORIA FEMININA

IMAGES OF WOMEN AROUND THE MYTH OF PENELOPE IN THE POETRY OF FEMALE AUTHORSHIP

Rogério Martins de Carvalho1

Resumo: A poesia de autoria feminina, aqui representada pelas escritoras brasileiras, Myriam Fraga e Marina Colasanti e pela escritora portuguesa, Maria Tereza Horta, ao deslocar a personagem homérica, Penélope, do seu lugar de origem, fruto do pensamento falocêntrico, engendra imagens de mulheres a partir do pensamento feminino. Propondo uma verdadeira revisão dos mitos e atuando no interior do discurso patriarcalista, a literatura de autoria feminina passa a apresentar na contemporaneidade, contradiscursos, resignificando o lugar e o papel da mulher na sociedade. 

Palavras-chave: Mito de Penélope. Poesia. Discurso. Relações de gênero. 

Abstract: The poetry of female authorship, here represented by Brazilian writers Myriam Fraga and Marina Colasanti and the Portuguese writer, Maria Teresa Horta, to move the Homeric character, Penelope, from its place of origin, the result of phallocentric thought engenders images of women from female thought. Proposing a genuine review of the myths and acting within the patriarchal discourse, the literature of female authorship shall submit in contemporary world, counter-discourses, redefining the place and role of women in society. 

Key-words: Myth of Penelope. Poetry. Speech. Gender relations.

1 Especialista em Letras – Estudos Linguísticos e Literários pela Universidade do Estado da Bahia – UNEB. 

1 INTRODUÇÃO

      Aquela que tece enquanto espera, esta é a imagem que nos salta à mente quando ouvimos, lemos ou pensamos sobre o mito de Penélope. A personagem homérica, inserida numa sociedade ostensivamente patriarcalista, é pensada a partir dos princípios de fidelidade extrema da mulher que fica em relação ao marido que parte.
    Opondo-se a isto, a literatura e, em especial, a poesia de autoria feminina, desloca o lugar de Penélope configurando-a não mais como aquela que tece enquanto espera, submissa, fiel e passiva. Percebemos na Penélope circunscrita dentro da poesia feminina o: “[...] deslizar do lugar da espera, mesmo que esse movimento se constitua apenas como vontade ou, ainda, como auto-reflexão de sua própria condição na sociedade” (SILVA, 2011, p. 1).
    Vitimada por uma sociedade cujo discurso patriarcalista imperou por muitos e muitos séculos, a mulher se vê confinada a ocupar o espaço doméstico, o que não lhe confere o direito à vida pública. Impossibilitada de expressar-se publicamente por séculos, a mulher, oportunamente, apropria-se das possibilidades proporcionadas pelos novos tempos e, sabiamente, adentra inúmeras áreas da sociedade rompendo estereótipos e desestabilizando discursos cristalizados.
    Dentre esses espaços adentrados pela mulher, no campo das artes, a literatura, tem se concretizado ambiente propício para a revisão de arquétipos e imagens impostas a esta, uma vez que, como podemos inferir a partir do pensamento de Silva (2004, p. 1), escritoras empreendem uma verdadeira revisão dos mitos ou arquétipos femininos eleitos pela cultura patriarcal e que cristalizaram determinadas imagens, passando agora a serem problematizados e ressignificados.
   Ao empreenderem uma revisão dos mitos e arquétipos femininos cristalizados pela cultura patriarcal, estas escritoras têm contribuído para o deslocamento de imagens há muito impostas à mulher. Escritoras, como Myriam Fraga, com os poemas: Penélope e Os argonautas, Maria Tereza Horta, nos poemas: Regresso e Violência e Marina Colasanti, com a obra: A moça tecelã, apropriam-se da escrita poética e apresentam, em sua literatura, contradiscursos que põem em evidência o inconformismo feminino. Nesta direção, ao reescreverem o mito de Penélope, as escritoras reelaboram novas perspectivas de representações da mulher, possibilitando-nos refletir e repensar não só o lugar de Penélope dentro da mitologia, mas o lugar da mulher na sociedade a partir da ótica feminina.
     Para ajudar nas discussões abordadas neste artigo recorremos ao apoio teórico de Colling (2004), que ao discorrer sobre a construção histórica do feminino e do masculino, nos permite compreender os conflitos relacionados às questões de gênero. Para a autora, “[...] as relações entre homens e mulheres, [...] implicam desigualdades políticas, econômicas e sociais e [...] configuram papeis diferenciados segundo o sexo” (COLLING, 2004, p. 17).
     Silva (2012), que ao estudar as rasuras do mito de Penélope na literatura de autoria feminina, mais especificamente na literatura de Myriam Fraga em: Purificações ou o sinal de talião, publicado em 1983, coloca-se a refletir sobre a literatura feminina enquanto lugar de desconstrução de arquétipos propostos pelos mitos. Segundo Silva (2012, p. 1), “[...] os mitos começaram, na emergência da poesia de autoria feminina, a serem ressignificados, problematizando questões inerentes a nossa humanidade, [...], colocando em discussão o masculino e o feminino na cultura”.
   Welzer-Lang (2001), que em seu texto intitulado: A construção do masculino: dominação das mulheres e homofobia, ao discorrer sobre a relação homem/mulher, masculino/feminino na sociedade, analisa os esquemas, os hábitos, o ideal viril, homofóbico e heterossexual que constroem e fortalecem a identidade e a dominação masculina sobre o feminino.
     Vianna (2001), que em seu ensaio intitulado: Sexo, cultura & política, ao problematizar acerca das questões de gênero, abordando sobre as noções de sexo e sexualidade, propõe que o ser masculino ou o ser feminino se dá no âmbito sociocultural. Para o autor, é a sociedade quem define os seus campos do feminino e do masculino, e o grau de tolerância e aceitação quando tais papéis não coincidem com corpos machos e corpos fêmeas.
     Ao discorrer sobre a temática: Imagens de mulheres: o deslocar do minto de Penélope na literatura de autoria feminina, o presente artigo torna-se relevante uma vez que analisa como se dá o deslocamento do mito da personagem homérica, Penélope, dentro da literatura de autoria feminina e o que esta literatura propõe quando revisa os mitos.

2 ENTRE O PÚBLICO E O PRIVADO, UMA ANÁLISE DOS ESPAÇOS OCUPADOS PELO HOMEM E PELA MULHER NA SOCIEDADE

    Antes de analisarmos como se dá o deslocamento do mito de Penélope na literatura de autoria feminina e o que esta propõe quando revisa os mitos, objeto de estudo deste artigo, julgamos necessário traçar uma breve discussão acerca da relação homem/mulher, buscando compreender esta relação como uma relação de dominação do masculino sobre o feminino.
     Se levarmos em consideração os espaços demarcados socialmente para o homem e para a mulher ao logo da historiografia humana, perceberemos como já prenunciado na introdução deste trabalho, que ao homem é conferido o espaço público e à mulher o espaço privado. Em outras palavras, podemos dizer que ao homem é conferido o direito de trabalhar fora de casa, de desfrutar dos prazeres extraconjugais, de manter e governar o lar, a esposa e os filhos; ao passo que à mulher compete cuidar do lar, dos filhos e submeter-se ao governo do marido, fiel e passivamente.
     Nesta direção, ao discorrer sobre a relação de dominação do homem sobre a mulher, Welzer-Lang (2001, p. 461) ressalta que: “Os homens dominam coletiva e individualmente as mulheres. Esta dominação se exerce na esfera privada ou pública e atribui aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos.”
   No âmbito social evidenciamos que a opressão das mulheres pelos homens aparece como um sistema dinâmico no qual as desigualdades vividas pelas mulheres são os efeitos das vantagens atribuídas aos homens pela própria sociedade. Nesta direção, Vianna (2001), observa que:

[...] para se entender o caráter socialmente construído do ser feminino e do ser masculino. Basta que nos voltemos para a nossa própria sociedade: o carro para o menino, a boneca para a menina; a rua para o menino, a casa para a menina; a rispidez para o menino, a delicadeza para a menina [...]. Um menino delicado e uma menina muito moleque chamam logo a atenção porque estão fora do lugar (VIANNA, 2001, p. 102).

    Como podemos evidenciar, a partir do pensamento supracitado, é a sociedade quem impõe e molda o ser homem e o ser mulher, o ser masculino e o ser feminino. Assim, podemos concluir que o ser homem e o ser mulher surgem como resultado de uma construção social. No entanto, vale salientar que essa construção social do homem e da mulher, do masculino e do feminino, implica uma relação de desigualdade no que tange à mulher, uma vez que esta, como bem afirma Colling: “é alienada pela condição histórica que a sociedade lhe reserva. [...] é fabricada pela história, enclausurada em papéis que lhes são designados, obrigada a se submeter à condição de objeto e à passividade” (COLLING, 204, p. 32).
    É graças à situação pela qual vem passando a mulher ao logo dos séculos, mulher essa, ora enclausurada, ora confinada no espaço privado/doméstico, obrigada a se submeter à condição de objeto e à passividade, sem direito à participação na vida pública nem nas decisões políticas, que muitas mulheres inconformadas com tal situação começam a galgarem para si novos espaços, inclusive o espaço público. A respeito da ocupação deste espaço por homens e mulheres, Colling (2004) evidencia que:

No espaço público, espaço da política por excelência, homens e mulheres historicamente se situaram em pólos opostos. O homem público sempre reconhecido de sua importância, participando das decisões de poder. Já a mulher pública, sempre foi vista como uma mulher comum que pertence a todos, não célebre, não ilustre, não investida de poder (COLLING, 2004, p. 22).

    Ainda nesta direção, Perrot (1998, p. 7) ressalta: “a mulher pública constitui a vergonha, parte escondida, dissimulada, noturna, um vil objeto, território de passagem, apropriado, sem individualidade própria.” Assim fica evidente que, na dualidade entre o espaço público ocupado pelo homem e o espaço público ocupado pela mulher, há uma relação desigual no que se refere aos papeis conferidos pela sociedade a cada um dos indivíduos.
    Com seus espaços demarcados pela sociedade e na sociedade, homens e mulheres passam a comportar-se como manda o figurino. A mulher, enquanto “senhora do lar” enclausura-se, fiel e passiva em seu lar, cuidando do marido, da casa e dos filhos; o homem enquanto pessoa pública regressa-se à vida pública, participando das decisões políticas e desfrutando de tudo o que lhe é conferido pela sociedade.
    Esta demarcação de espaços para homens e mulheres tão arraigada junto à sociedade passa a influenciar o campo das artes. A literatura, por sua vez, inserida numa sociedade ostensivamente patriarcalista, por séculos contribuiu para a perpetuação de arquétipos que põem a mulher confinada no âmbito do espaço privado. Na Idade Média, com um recorte histórico um pouco mais distante dos nossos dias, a literatura de Homero, um clássico universal, já idealizava uma mulher apta a coabitar o espaço privado. Em A Odisseia, por exemplo, como veremos adiante, Penélope é aquela que fica e tece enquanto espera ansiosa pelo retorno de Ulisses. Ali presenciamos Homero, confinando Penélope na instância do privado e Ulisses, como herói, é colocado no espaço público, a guerrear, a desbravar os mares e a desfrutar da proteção dos deuses.
    Na contemporaneidade, a demarcação dos espaços para homens e mulheres tem se invertido ou pelo menos tem sido revista e repensada, principalmente no âmbito da literatura, já que, com o advento da literatura de autoria feminina, a mulher apropria-se da palavra escrita passando a expor seu pensamento e seu discurso frente às imposições da sociedade para com a mulher.
     A literatura de autoria feminina, portanto, tem se concretizado ambiente propício, possibilitando à mulher desconstruir arquétipos impostos à mesma ao longo dos séculos pela sociedade e, principalmente, pelo pensamento masculino/falocêntrico que, de posse da palavra escrita e da liberdade de expressão proporcionada pela sociedade sempre moldou, na literatura, a mulher conforme seus ideais.
     Diante do exposto, fica evidente que a literatura de autoria feminina, contrariando um modelo de escrita literária que já na Idade Média moldava a mulher enquanto aquela que, com uma vida restrita ao lar apenas cuida da casa, dos filhos e espera fiel e passiva pela chegada do marido, propõe, na contemporaneidade, uma revisão de arquétipos e imagens há muito designados à mulher, passando, portanto, a construir, a partir do pensamento, da ótica e da escrita feminina, imagens de mulheres que em muito difere daquela pensada e idealizada por uma sociedade pautada nos ideais patriarcalistas, falocêntricos, machistas.
     A literatura de autoria feminina ao propor uma revisão dos mitos, mais especificamente do mito de Penélope, personagem homérica analisada neste trabalho, nos possibilita visualizar o real inconformismo feminino diante da situação enfrentada pela mulher ao logo dos séculos. Dessarte, a personagem homérica quando inserida dentro da literatura de autoria feminina, passa a ser urdida, não mais com os fios da passividade, mas, sobretudo, com os fios do inconformismo de uma mulher outrora passiva, fiel e submissa.

3 PENÉLOPE, UMA TECELÃ URDIDA COM FIOS DE INCONFORMISMO NA POESIA DE MYRIAM FRAGA E MARIA TEREZA HORTA

     Na poesia de Myriam Fraga, além da obra Os Deuses lares, publicado em 1991, em que Penélope é retomada e problematizada, Penélope pode ser percebida, a princípio, em dois poemas, Penélope e Os argonautas, publicados em Purificações ou o Sinal de Talião, em 1981. Ao reescrever o mito de Penélope, a escritora baiana, no poema que leva, no título, o próprio nome da personagem homérica, engendra uma Penélope cujo Ulisses passa a residir, tão somente, no plano da memória:

Hoje desfiz o último ponto, 
A trama do bordado. 

No palácio deserto ladra 
O cão. 

Um sibilo de flechas 
Devolve-me o passado. 

Com os olhos da memória 
Vejo o arco

Que se encurva, 
A força que o distende.

Reconheço no silêncio 
A paz que me faltava, 
(No mármore da entrada 
Agonizam os pretendentes). 

O ciclo está completo 
A espera acabada.

Quando Ulisses chegar 
A sopa estará fria. (FRAGA, 2008, p. 264).

    Desfeito o último ponto, finda a espera por Ulisses. Finda a ideia daquela que tece enquanto espera. Assim começamos a entender o deslocamento do mito de Penélope dentro da poesia de Myriam Fraga. Para a Penélope fragueana, Ulisses encontra-se circunscrito no plano da memória. Isso se torna evidente quando, no interior do poema, deparamo-nos com imagens tais como: “Um sibilo de flechas / Devolve-me o passado. / Com os olhos da memória / Vejo o arco / Que se encurva, / A força que o distende. (FRAGA, 2008, p. 264). Estas imagens demarcam, para Penélope, a ausência física de Ulisses, metaforizando um silêncio que lhe devolve a paz.
     Ao contrário da Penélope homérica, que espera fiel e passiva por Ulisses durante vinte anos, enganando seus pretendentes através do heroico ato de tecer durante o dia e destecer à noite, a Penélope pensada por Myriam Fraga, cujos pretendentes agonizam no mármore da entrada, é fiel não mais à longa espera por Ulisses, mas ao próprio estado de transformação interior em que se encontra. Este estado de transformação pode ser testificado nos últimos versos do poema. Nestes, percebemos que ao chegar Ulisses, Penélope não será mais a mesma: “A sopa estará fria” (FRAGA, 2008, p. 264).
     Penélope, ao lançar Ulisses no plano da memória, liberta-se do imperioso jugo da espera. Este libertar-se pode ser entendido como uma metáfora do desejo de uma mulher que, por longo período da historiografia humana, viu-se impossibilitada de desatrelar-se do imponente senhoril de uma sociedade patriarcalista que, dentre outras coisas, impedia-a de ocupar o espaço público.
     Nascida de mãos inconformadas, a poesia fragueana, ao repensar o mito de Penélope, não abre mão de problematizar a dualidade entre este espaço público ocupado pelo homem e o espaço privado imposto à mulher. Esta dualidade adquire relevância discursiva nas entrelinhas do poema, Os argonautas:

[...]
Há os partem
E os que tecem
Na urdidura das sombras,
É Penélope
Mais astuta que Ulisses?
(FRAGA, 2008, p. 238).

     Nos versos de Myriam Fraga, Penélope é aquela que fica e tece enquanto Ulisses é aquele que, como os argonautas, parte para cumprir seu destino. Neste aspecto, a Penélope, de Myriam, a princípio, parece não diferir da de Homero em A Odisséia. No entanto, basta não dispersarmos os olhos e logo perceberemos o diferencial entre a Penélope homérica e a fragueana.
     “Prudente”, “ajuizada”, “sensata”; estes são os adjetivos (típicos do discurso patriarcalista) que recaem sobre Penélope, em Homero. Sobre Ulisses, incidem qualificativos dignos de um herói: o “nobre”, “guerreiro solerte”, o “astuto”. Ao revelar uma Penélope mais astuta que Ulisses, a poesia de Myriam Fraga lança por terra, todo um modelo que reduz a mulher à estância doméstica/privada:

A “astúcia” de Penélope frente a Ulisses corrói todo um modelo que tem a mulher circunscrita na estância doméstica e com características diferenciadas em relação ao homem, remetendo a questão da “natureza feminina”. Astúcia é um atributo culturalmente convencionado como masculino, cabendo ao feminino outros atributos, modelados socialmente/culturalmente. (SILVA, 2007, p. 3).

     Pensada enquanto dona de um atributo culturalmente convencionado como masculino (a astúcia), a Penélope, circunscrita dentro do poema, Os Argonautas, rompe com o convencionalismo que reserva ao feminino outros atributos modelados social e culturalmente, dentre os quais se encontram: a ajuizada dona de casa, a prudente boa mãe e a sensata acompanhante do marido. Vale ressaltar que tais atributos configuram-se elementos delimitadores dos espaços e funções da mulher junto à sociedade. Assim como o de muitas mulheres, criadas: “[...] para enclausurar-se no espaço privado, dedicando-se à família e às coisas domésticas, zelando pelo bem-estar do marido e filhos, vocação benéfica para a sociedade inteira” (COLLING, 2004, p. 23).
     O heroísmo de Penélope reside na invisibilidade. Atrelada em seu próprio conflito, a personagem fragueana não consegue fazer outra viagem senão para dentro de si mesma, desbravando sua inquieta jornada, cujo timão é a angustia:

É difícil partir,
É tão difícil
Desatrelar do cais
Este navio
Que se chama Conflito.
[...]
A angústia é meu timão
Meu astrolábio
Nesta inquieta jornada.
(FRAGA, 2008, p. 237).

     Há, nas entrelinhas dos versos fragueanos, uma fenda que nos permite visualizar uma zona de conflito, entre o espaço público conferido ao homem e o espaço privado imposto à mulher. Esta zona de conflito aparece metaforizada na dualidade entre o destino dos argonautas, que partem “filhos do destino”, e o das tecelãs, que ficam:

[...]
Como barcos,
Ancorados em si,
No seu cansaço.
(FRAGA, 2008, p. 238).

      A Penélope, de Myriam Fraga, em Os Argonautas, ancorada em si mesma, não se configura como aquela que, sentada em frente ao tear, tece enquanto espera, mas como aquela cujos fios de inconformismo tecem o próprio estado conflitante pelo qual perpassou a mulher ao longo dos séculos, sedada à vida privada, mulher esta:

[...]
Que se renova apenas
Do que tece
e destrói.
(FRAGA, 2008, p. 238).

    A poesia de Myriam Fraga, como podemos evidenciar, ao deslocar a personagem homérica do seu lugar de origem, reescreve imagens de mulheres tecelãs, urdindo Penélope com fios de inconformismo.
    São com estes fios de inconformismo que a escritora portuguesa Maria Teresa Horta, à sua maneira, ao reescrever imagens de mulheres tecelãs, urde Penélope. Em Minha senhora de mim, publicado em 1974, encontramos o poema Regresso. Neste, o tecido é o próprio corpo da autora. É o corpo o lugar de viagem para onde regressa em reencontro consigo mesma:

Regresso para mim
E de mim falo
E desdigo de mim
Em reencontro
Os pontos
Um por um:
O sol
Os braços

A boca
O sabor

Ou os meus ombros

Trago para fora
O que é secreto
Vantagem de saudade
O que é segredo

Retorno para mim
E em mim toda
Desencontro já o meu regresso
(HORTA, 2009, p. 313).

    Em regresso ao seu próprio interior, na tentativa de reencontrar-se consigo mesma, a autora, tecendo ponto a ponto externa sua dimensão íntima, secreta, o que o eu-lírico resolve chamar de segredo. Logo após o externar deste segredo, percebemos um movimento de retorno, denunciando o refazer-se constante.
     Este refazer-se constante, presente nos versos de Maria Tereza Horta, e o renovar-se apenas do tece e destrói em, Os Argonautas, de Myriam Fraga, estabelecem uma intertextualidade dentro da poesia de autoria feminina, dialogando com a situação pela qual passou a mulher ao longo dos séculos, submetida a uma vida de opressão, tecendo sonhos e planos com dias de liberdade e destruindo-os no dia seguinte, sendo, portanto, “convidada” a renovar-se constantemente.
      Esta vida de opressão imposta à mulher, pela qual perpassa a poesia de Maria Tereza Horta, pode ser melhor compreendida nas entrelinhas do poema, Violência:

Ó secreta violência
dos meus sentidos domados
em mim parto
em mim esqueço

senhora de meu
silêncio
com tantos quartos fechados

Anoitece e desguarneço
despeço aquilo que
faço

Ó semelhança firmeza
mulher doente de afagos
(HORTA, 2009, p. 313).

    Angustiantes são estes versos, quando a autora engendra imagens de mulheres que, fadadas a uma vida de opressão, domadas e encerradas em seus quartos, não realizam outra viagem senão para dentro de si, enveredando por espaços com tantos quartos fechados. A secreta violência, prenunciada nos versos de Horta, metaforizam a angustiante situação de opressão a que foi submetida a mulher durante séculos. Mulheres silenciadas pelo discurso patriarcalista que as moldavam segundo suas convenções, tornando-as “senhoras do lar”, mulheres surdinamente inconformadas e, por isso, doentes de afagos.

4 A MOÇA TECELÃ, UMA PENÉLOPE, UMA IMAGEM DA MULHER NA CONTEMPORANEIDADE

    Como podemos evidenciar os fios do inconformismo é o timão que direciona a literatura de autoria feminina quando esta repensa o mito de Penélope. Destarte, são com esses fios que a escritora Marina Colasanti não deixa de apropriar-se da imagem daquela que com fios de inconformismo tece a própria vida.
     A escritora brasileira, por sua vez, ao escrever A moça tecelã, obra publicada em 2004, propõe um deslocamento do mito de Penélope que, diferentemente daquele encontrado nos versos de Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, cujo deslocamento restringe-se a uma tomada de consciência, em Colasanti apenas a tomada de consciência não é o suficiente, sendo necessário, portanto, exceder os limites do pensamento chegando à ação concreta.
   A moça tecelã é uma obra de caráter infanto-juvenil. No entanto, mesmo apresentando uma narrativa nos moldes dos contos de fada, um universo mágico, em que tudo é possível, em A moça tecelã o que temos, diferentemente da Penélope homérica que tece e destece à espera do seu Ulisses, é a imagem de uma princesa: “[...] a espera de seu príncipe ou de uma mulher diante do tear, cercada por quatro paredes, com marido e filhos e criados, é uma jovem solitária, mas autônoma que vive sua vida com tranquilidade” (SILVA 2012, p. 8).
      A autonomia conferida à personagem de Colasanti é tamanha que ela própria assume a criação de tudo que a cerca e de tudo o que tem necessidade:

Nada lhe faltava. Na hora da fome tecia um lindo peixe, com cuidado de escamas. E eis que o peixe estava na mesa, pronto para ser comido. Se sede vinha, suave era a lã cor de leite que entremeava o tapete. E à noite, depois de lançar seu fio de escuridão, dormia tranqüila. (COLASANTI, 2004, 9).
     
     Como podemos perceber com base no fragmento supracitado, nada faltava à moça tecelã, já que, tudo que queria era possível conseguir bastando para tanto sentar-se frente ao tear e tecer. Entretanto, conforme nos mostra a narrativa de Colasanti, a moça tecelã, mesmo em face do “poder” do tear, levava uma vida simples em uma casa simples, tecendo dias e noites, a natureza e tudo à sua volta como bem lhe convinha.
     Diante da simplicidade da vida que leva a moça tecelã, não suportando mais a solidão dos dias, rende-se ao pensamento e ao desejo de companhia, tecendo para si um príncipe, como sempre sonhou. Tecido o príncipe com quem sonhou dividir seus dias, “pensou nos lindos filhos que teceria para aumentar ainda mais sua felicidade” (COLASANTI, p. 10).
    Com base no fragmento acima descrito, é válido abrir um parêntese para salientar que Marina Colasanti, ao apresentar a moça tecelã como aquela que sonha em dividir seus dias com um príncipe e com os filhos - o que aumentaria sua felicidade – parece querer fazer referência às “senhoras do lar”, mulheres confinadas a viverem enclausuradas no lar, cuidando do marido e dos filhos, “suposta razão da felicidade feminina”.
      O sonho da moça tecelã com dias felizes ao lado do príncipe e dos filhos que haveria de tecer é um sonho agora só seu, pois: “se o homem tinha pensado em filhos, logo os esqueceu. Porque, descoberto o poder do tear, em nada mais pensou a não ser nas coisas todas que ele poderia lhe dar” (COLASANTI, 2004, p. 12).
     Frente ao poder do tear o príncipe, contrariando os sonhos da moça tecelã, inclusive o de tecer para si filhos, incumbiu-a de tecer arduamente um suntuoso palácio: “E entre tantos cômodos, o marido escolheu para ela e seu tear o mais alto quarto da mais alta torre” (COLASANTI, 2004, p. 12). Entre seus sonhos estilhaçados e o tecer os anseios do marido, a moça tecelã, enclausurada entre quatro paredes da mais alta torre foi, aos poucos, se consumindo.
      Tomada por profunda tristeza, o que com o tempo pareceu-lhe maior que o suntuoso palácio, com todos os seus tesouros, a moça tecelã rende-se a pensar o quão seria bom estar sozinha novamente e então:

Só esperou anoitecer. Levantou-se enquanto o marido dormia sonhando com novas exigências. E descalça, para não fazer barulho, subiu a longa escada da torre, sentou-se ao tear. Desta vez não precisou escolher linha nenhuma. Segurou a lançadeira ao contrário, e, jogando-a veloz de um lado para o outro, começou a desfazer o seu tecido. Desteceu os cavalos, as carruagens, as estrebarias, os jardins. Depois desteceu os criados e o palácio e todas as maravilhas que continha. (COLASANTI, 2004, p. 14).

    Como podemos evidenciar, é no cair da noite que a moça tecelã começa a destecer tudo o que o príncipe lhe incumbira de tecer. Neste aspecto, percebe-se claramente que a moça tecelã, equipara-se à Penélope homérica, que no cair da noite, destece tudo o que tecera durante o dia, e, nisso, revela-se mais astuta que Ulisses.
     Após destecer o palácio juntamente com todos os seus tesouros:

A noite acabava quando o marido, estranhando a cama dura, acordou e, espantado, olhou em volta. Não teve tempo de se levantar. Ela já desfazia o desenho escuro dos sapatos, e ele viu seus pés desaparecendo, sumindo as pernas. Rápido, o nada subiu-lhe pelo corpo, tomou o peito aprumado, o emplumado chapéu. (COLASANTI, 2004, p. 14).

     Destecido o marido, finda a tristeza da moça tecelã, e ela novamente, viu-se na sua casa pequena e sorriu para o jardim além da janela.
    Diferente das Penélopes apresentadas por Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, a moça tecelã de Marina Colasanti, como podemos inferir a partir de pensamento de Silva (2012, p. 10), inicia seu percurso como alguém autônoma, numa perspectiva mais contemporânea, uma mulher profissional que conduz sua própria vida, eis a grande metáfora do árduo exercício de tecer e, mesmo sendo enredada pelo engano, retoma o controle de sua vida, destecendo a própria tristeza.
     Se nas Penélopes apresentadas por Myriam Fraga e Maria Tereza Horta, o deslocamento do mito de Penélope consiste numa tomada de consciência, desencadeando uma luta interior, motivada, é claro, pelo inconformismo diante das limitações impostas à mulher por uma sociedade imbuída de rígidos valores de gênero, construídos socialmente, em Colasanti, como já prenunciado, apenas essa tomada de consciência e essa batalha interior contra as limitações impostas à mulher parece não ser o suficiente, sendo necessário, portanto, exceder os limites do pensamento e agir. Assim sendo, concluímos que a moça tecelã de Colasanti, conforme aponta Silva (2012, p. 10), estabelece uma imagem mais próxima do atual estado das lutas feministas na sociedade. Portanto, é possível concluir que os atributos sociais, tradicionalmente demarcados para essas representações, são deslocados pela moça tecelã, ao remover a rigidez das barreiras que limitam sua ação, apontando para a mobilidade de todo e qualquer valor previamente imposto.
    Diante das discussões aqui apresentadas, nos sentimos convidados a repensar, a partir da reelaboração do mito grego, apresentado pelas poetizas: Myriam Fraga, Maria Tereza Horta e Marina Colasanti, outro lugar para Penélope, marcado não pela espera, e sim, pelo inconformismo.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

       Diante de tudo o que foi discutido neste artigo, concluímos que o modo como o mito foi utilizado pela literatura desde a Idade Média, tendo seus sentidos cristalizados e perpetuados, moldando socialmente uma mulher e um homem, segundo modelos idealizados, é na contemporaneidade revisto e reelaborado pelas novas poéticas.
      Assim sendo, ao deslocar a personagem homérica, Penélope, do seu lugar de origem, fruto do pensamento falocêntrico, a poesia de autoria feminina, aqui representada pelas três autoras supracitadas, engendrando imagens de mulheres, a partir da ótica e do pensamento feminino, propõe uma verdadeira revisão dos mitos, atuando no interior do discurso patriarcalista, de modo a apresentar na contemporaneidade, contradiscursos, ressignificando, não só o lugar, mas também o papel da mulher na literatura e na sociedade.

REFERÊNCIAS

COLASANTI, Marina. A moça tecelã. São Paulo: Global, 2004.
COLLING, Ana. A construção histórica do feminino e do masculino. In: STREY,
Marlene Neves; CABEDA, Sonia T. Lisboa; PREHN, Denise (Org.). Gênero e cultura: questões contemporâneas. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004.
FRAGA, Myriam. Poesia reunida. Salvador: Assembléia Legislativa do Estado da Bahia, 2008.
HORTA, Maria Tereza. Publicações Dom Quixote. Cem. Alfragide. Portugal, 2009.
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SILVA, Ricardo Nonato Almeida de Abreu. Novas penélopes: a rasura de um mito na literatura de autoria feminina. Disponível em:
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