quarta-feira, 14 de março de 2012

INCESTO E SOCIEDADE: UMA ANÁLISE DA OBRA ÁLBUM DE FAMÍLIA, DE NELSON RODRIGUES

ROGÉRIO MARTINS DE CARVALHO

O presente ensaio pretende analisar a relação incestuosa da obra Álbum de família, do teatrólogo brasileiro Nelson Rodrigues, traçando um contraponto entre incesto e sociedade. Entendida como um microcosmo desta, Álbum de família vem desnudar uma sociedade que, envolta sob o véu das convenções sociais, tenta reprimir um dos mais recônditos impulsos inerentes ao homem, ou seja, o incesto.

Escrito em 1945 e só estreada 22 anos depois, em 29 de julho de 1967, no Teatro Jovem do Rio, por causa da total interdição da Censura, Álbum de família, tragédia que se seguiu a Vestido de noiva, dá início ao ciclo do teatro desagradável, ao passo que o próprio Nelson Rodrigues afirma: [...] Álbum de família, Anjo negro e a recente Senhora dos afogados, [...] são obras pestilentas, fétidas, capazes, por si sós, de provocar o tifo e a malária na plateia (RODRIGUES apud MAGALDI 2004. p. 49).

Pestilenta, fétida, capaz, por si só, de provocar o tifo e a malaria na plateia. O que teria motivado Nelson Rodrigues a mencionar tais palavras sobre sua própria criação? Por que elogiar tão severamente algo que nasceu de suas entranhas psicológicas? O que tornou Álbum de família merecedora de tais adjetivos? Estes são alguns dos questionamentos que fazemos quando lemos a crítica do próprio autor sobre a obra. No entanto, basta penetrarmos à leitura das primeiras páginas da obra para logo nos darmos conta do porquê de tantos adjetivos:

Speaker (enquanto Jonas e Senhorinha estão imóveis) - Primeira página do álbum. 1900. Primeiro de Janeiro: os primos Jonas e D. Senhorinha, no dia seguinte ao do casamento. Ele 25 anos. Ela 15 risonhas primaveras. Vejam a timidez da jovem nubente. Natural – trata-se da noiva que apenas começou a ser esposa. (RODRIGUES 1946. p. 2).

No trecho supracitado, duas informações merecem especial atenção: a primeira é que o casamento se dá entre os primos Jonas e D. Senhorinha; a segunda é que D. Senhorinha tem apenas 15 anos de idade. Tais informações ganham relevância no momento em que introduz a obra, dando ao leitor uma prévia do que virá adiante.

Segundo Coutinho (2002. p. 335), incesto significa: “união sexual ilícita entre parentes muito próximos”. Dito isto, notamos que o casamento de Jonas e D. Senhorinha se concretiza um incesto, pois os mesmos são primos e o casamento entre eles pressupõe sexo. Marcada por uma relação incestuosa desde sua formação, a família do casal vai desconsertar o leitor/espectador que, sob o véu das convenções sociais, reprime a tudo o que a elas se opõem.

A idade da jovem nubente de apenas 15 anos não passa despercebida aos olhos de um espectador/leitor atento. A idade de Senhorinha, apontada logo no início da obra, parece proposital, uma vez que denota o fascínio de Jonas por mocinhas que vai perdurar desde o seu casamento até sua morte, quando não suportando a perda da sua filha (Glória), por quem alimentava um forte desejo, prefere a morte a ter que viver sem a sua Glória. Casamento entre parentes, a esposa, uma garota de apenas 15 quinze anos. Está armada a trama que dará luz à intrigante tragédia Álbum de família:

Com Vestido de noiva, conheci o sucesso; com as peças seguintes, perdi-o, e para sempre. Não há nesta observação nenhum amargor, nenhuma dramaticidade. Há, simplesmente, o reconhecimento de um fato e sua aceitação, pois a partir de Álbum de família [...] enveredei por um caminho que pode me levar a qualquer destino, menos ao êxito (RODRIGUES apud MAGALDI 2004. p. 49).

O que há de tão intrigante nesta tragédia que teria levado Nelson Rodrigues a reconhecer que a mesma o fez enveredar por um caminho que certamente o levaria a qualquer destino, menos ao êxito? Não é preciso muito para se chegar a uma resposta a tal questionamento, bastando para tanto darmos continuidade à leitura da obra para, então, percebermos a causa de tanto pessimismo.

Gostaríamos de abrir um parêntese para fazer algumas colocações a título de reflexão. Numa visão cristã, poderíamos dizer que o casamento é algo sagrado, instituído por Deus para povoar a terra. Dito isto, perguntamos, o que teria feito os filhos e filhas de Adão e Eva (primeiro casal da raça humana) para cumprir a nobre missão de povoar a terra? Esta interrogação, certamente, muitos de nós já fizemos, e, possivelmente, muitos de nós acreditamos que para cumprir a missão de povoar a terra foi necessária uma relação incestuosa entre os membros da família primogênita.

Se a primeira família é fruto ou não de uma relação incestuosa, isso não vem ao caso, não é nossa intenção discutir tal aspecto, no entanto, é possível supor que, se a nossa sociedade reprime tal relação, é graças às convenções sociais que, agindo sobre o consciente de cada indivíduo inibe suas ações, ditando, portanto, o que este pode e o que não pode fazer para viver em sociedade. Sendo assim, podemos concluir que, possivelmente, um dos motivos pelo qual o homem não comete maiores atrocidades seja, justamente, o temor à repressão social.

Mas até que ponto, nós, mesmo diante de uma sociedade, que dita erros e acertos, podemos reprimir nossos impulsos sexuais? Acreditado ser esta a grade proposta lançada por Nelson Rodrigues. Folheemos o Álbum de família na tentativa de desvelar esta sociedade que, sob o véu das convenções, insiste em camuflar suas facetas.

Se a nossa suposição de que os membros da primeira família estabeleceram entre si uma relação incestuosa, o que concretizaria o incesto como algo inerente à sociedade (ao homem) desde os primórdios de sua formação, então não haveria motivos para maiores estranhamentos (por parte da sociedade) quando Nelson Rodrigues resolve colocar, em sua obra, uma mãe que se relaciona sexualmente com o filho, um pai que não esconde seu desejo pela filha e vice-versa, um irmão que se apaixona pela irmã e assim sucessivamente.

Segundo Magaldi (2004), “desde que aceitas as regras do jogo social, o homem reprimiu anseios e criou tabus”. Acreditamos estar aí uma das razões que levou Álbum de família a se tornar uma obra causadora de tanto estranhamento, provocando o tifo e a malaria na plateia, pois, uma vez, a família de Jonas e D. Senhorinha não aceitando as regras do jogo social, vai desconstruir tabus, vomitando a profunda natureza humana, avessa a quaisquer padrões.

Não podemos nos esquecer que Álbum de família se apresenta como um microcosmo da sociedade, a mesma sociedade cuja mídia não se cansa em noticiar: pais mantendo filhas prisioneiras de seu assédio sexual, chegando ao ponto de gerar filhos com elas. Portanto, torna-se evidente que, ao problematizar a relação incestuosa da família de Jonas e Senhorinha, Nelson Rodrigues não faz outra coisa, senão desnudar a sociedade, mostrando-lhe que ela própria traz em si aquilo que ela reprime, expele, ou seja, o incesto.

Ao referir-se a Nelson Rodrigues, afirma Magaldi (2004. p. 51): “[...] o dramaturgo resolvera abolir a censura e desnudar o indivíduo, não encarando o incesto como fenômeno excepcional, mas o impulso mais recôndito da natureza humana”. Diante desta afirmação, começamos a perceber o porquê de Álbum de família ser considerada uma obra fétida, pestilenta, capaz de provocar o tifo e a malária na plateia.

Quem guarda segredos não quer tê-los revelados. Está aí uma afirmação que nos parece bem pertinente para pensarmos em tantos adjetivos lançados pelo próprio autor sobre sua obra. Reveladora de um dos segredos mais recônditos da natureza humana (incesto), Álbum de família não poderia esperar outra coisa, senão a forte censura, o escárnio, o desprezo da plateia.

Folheamos o Álbum da família de Jonas e D. Senhorinha e logo aparece a relação lésbica de Glória e Tereza no dormitório do internato de onde são expulsas. Juras de fidelidade e amor eterno são trocadas entre Glória e Tereza. Ao propor uma relação amorosa entre duas mulheres, Nelson Rodrigues viola as regras do jogo social que, pautadas numa visão patriarcalista, reprime a tudo o que a elas se opõem. Neste momento, podemos inferir que, com a personagem Glória, o teatrólogo dá à mulher a possibilidade de romper as barreiras da censura, externando, portanto, os mais ocultos desejos inerentes ao homem.

Imaginemos uma sociedade como a de 45, certamente, mais conservadora, preconceituosa e estereotipada do a que temos hoje. Inserida neste contexto, Glória é, sem dúvidas, a personagem de quem se utiliza o teatro rodriguiano para expor uma sociedade que, vítima ou não de suas próprias convenções, age com discriminação e repressão contra tudo o que difere de seus padrões conservadores. Com a relação amorosa de Glória e Tereza, no internato, percebemos um apontar de dedo para a sociedade como que querendo dizer-lhe: olha, vocês discriminam, reprimem, pois saibam que é, justamente, isso o que acontece nos bastidores, de modo que nem mesmo os irmãos de fé (cristãos) são poupados dos desejos carnais.

Vivemos numa sociedade cuja função dos pais, dentre muitas outras, consiste em educar, manter, zelar pela vida, amar e etc., o que não inclui sexo entre pais e filhos. No entanto, certamente, muitos de nós já presenciamos ou ouvimos relatos de famílias cujo pai mantinha relação sexual com a filha, o filho com a mãe, e assim por diante. Neste aspecto, Álbum de família, mais uma vez, desnuda a sociedade quando resolve problematizar o incesto de Jonas com a filha Glória e de D. Senhorinha com o filho Nôno.

O personagem seminarista, Guilherme ama sua irmã Glória. Mutilando-se por amor, procura, na castração, uma solução para não cometer o pecado de possuir a irmã. Imaginemos uma relação amorosa entre dois irmãos. Agora imaginemos um destes irmãos sendo padre. Para uma sociedade “conservadora dos valores morais” como a nossa, dá até para imaginar a represália a ser enfrentada por ambos. Pois bem, a narrativa da obra não nos dá margem para perceber uma relação amorosa (sexual) entre Guilherme e Glória, no entanto, a narrativa nos permite afirmar que havia em Guilherme uma um forte desejo de possuir a irmã:

Guilherme – [...] Você sabe por que eu fui ser padre?
Glória – Não interessa!
Guilherme – Por sua causa! Você era garota naquele tempo... Mas eu não podia ver você, só pensava em você...
Glória – Agora estou vendo porque é que você quis que eu secasse a roupa e desse para você espremer.
Guilherme não foi por isso, juro! Você diz isto porque não sabe que tive um acidente... voluntário! Já não sou como antes. (RODRIGUES, 1946. p 12).

O que levaria um seminarista (padre) apaixonado pela irmã a mutilar-se, extirpando aquilo que para o homem representa o ser macho, viril? Talvez o receio à represália social seja uma boa resposta, afinal de contas, há de convir que um padre precisa ser um indivíduo socialmente íntegro, correto, seguidor exemplar das regras e convenções impostas pela nossa sociedade.

Com base no trecho da obra citado anteriormente, podemos inferir, a partir do diálogo entre os irmãos, que, nem mesmo a mutilação foi suficiente para reprimir o desejo de Guilherme em possuir a irmã Glória. Sendo assim, percebemos, mais uma vez, Nelson Rodrigues cutucar a sociedade, num instante em que, utilizando-se do personagem Guilherme, que mesmo mutilando-se não consegue sanar o desejo de possuir a irmã, propõe ao espectador (sociedade) que, por mais que o homem se mutile, e que a sociedade atue com repressão, ainda assim, não será possível reprimir o anseio sexual humano, uma vez que este está na mente e não nos órgãos sexuais.

Como se não bastasse o incesto dos pais para com os filhos, do irmão para com a irmã, Nelson Rodrigues problematiza, ainda, a relação incestuosa do filho Edmundo que, não conseguindo livrar-se da paixão que sente pela mãe, retorna ao lar depois de se separar da esposa Heloísa. Se parássemos apenas um instante para pensar em como a sociedade trataria alguém como Edmundo que, deixando o amor da esposa, volta para casa na expectativa de vivenciar a paixão que sente pela mãe, no mínimo, chegaríamos a algumas conclusões, possivelmente, drásticas (Um animal! Um bicho! Um louco! e etc.).

Diante do exposto, reforçamos nossa compreensão acerca do porquê de Álbum de família ser considerada pelo próprio autor como uma obra capaz de provocar o tifo e a malária na plateia. Pestilenta e fétida, mais uma vez a tragédia vai chocar a plateia/espectador quando, despindo a sociedade, escancara aquilo que o homem (graças às regras do jogo social) insiste em camuflar: o incesto.

Finalmente, para completar o ciclo incestuoso do Álbum da família de Jonas e D. Senhorinha, Nelson Rodrigues, utilizando-se da personagem Tia Rute, irmã solteirona e feia (sem o menor encanto sexual) de D. Senhorinha, que por gratidão a uma noite de amor, arranja menininhas para Jonas desvirginar, abre caminho para a discussão em torno da relação amorosa de duas irmãs com um único homem.

Ao propor tal discussão a tragédia rodrigueana, desnuda a sociedade, evidenciando o sexo como um dos desejos mais imponentes da natureza humana, cujo homem, não respeitando o espaço do outro, não mede esforços para sanar tal desejo. Sentimos ainda na relação incestuosa da tríade, mais um apontar de dedo para a sociedade, denunciando aquilo que, segundo Plutarco : “é a curiosidade do amor e dos prazeres ilícitos”, o adultério, como algo inerente ao homem.

Com uma família cuja mãe (D. Senhorinha) relaciona-se sexualmente com o filho louco (Nôno); um pai (Jonas) que desvirgina meninas em casa, em virtude do desejo que sente pela filha (Glória); um filho (Edmundo) que retorna ao lar após separar-se da mulher (Heloisa), por não conseguir esquecer a paixão que sente pela mãe; um primogênito e aprendiz de padre (Guilherme), que não se livra do desejo de possuir a irmã (Glória), nem mesmo mutilando-se; uma filha caçula (Glória), expulsa do colégio interno após ter uma relação amorosa com a colega de quarto (Tereza) e uma tia (Rute), irmã solteirona e feia de dona D. Senhorinha. O teatrólogo Nelson Rodrigues conduz o espectador no folhear de um Álbum de família, cujas primeiras impressões se mostram estranhas e, aos poucos, o espectador vai conhecendo o verdadeiro protagonista do Álbum: o incesto.

Ao revelar o verdadeiro protagonista do Álbum de família, Nelson Rodrigues, desnudando a sociedade, faz o espectador olhar com lupa situações que costumeiramente passam despercebidas no quotidiano, ao passo que o encadeamento de relações incestuosas e conflitantes da família de D. Senhorinha e Jonas revelam, ao espectador, uma condição inerente ao ser humano, mas que, por causa da sociedade e suas convenções, foi, e, possivelmente, tem sido jogada para baixo do tapete.

REFERÊNCIAS

RODRIGUES, Nelson. Álbum de família, tragédia em três atos.
Disponível em: http://www.helderdarocha.com.br/teatro/nelson/album/AlbumDeFamilia_texto_02.pdf Acesso em: 22 dez. 2011, 10:15:23.

MAGALDI, Sábato. Teatro da obsessão: Nelson Rodrigues – São Paulo. Ed. Global, 2004.

COUTINHO, Anailza. Mini Dicionário Brasileiro da Língua Portuguesa. Editora Casa da Letras. 2 ed. - S. Paulo: 2002.

PLUTARCO, O adultério é a curiosidade do amor e dos prazeres ilícitos. Disponível em: http://www.citador.pt/frases/o-adulterio-e-a-curiosidade-do-amor-e-dos-prazere-plutarco-8645 Acesso em: 25 dez. 2011, 14:25:15.

ÁLBUM de família, de Nelson Rodrigues. Disponível em: http://www.passeiweb.com/na_ponta_lingua/livros/analises_completas/a/album_de_familia Acesso em: 23 dez. 2011, 26:31:45.

A SIMBOLOGIA DA PEDRA NA POÉTICA DE ÂNGELA VILMA

ARILDA RUFINO DA ROCHA
ROGÉRIO MARTINS DE CARVALHO

O presente ensaio pretende analisar a simbologia da pedra enquanto metáfora do amor que atravessa os tempos na poética da escritora baiana Ângela Vilma . Antes de andarmos por entre as pedras, semeadas pelos caminhos desse amor cantado em versos pela escritora, faz-se necessário traçar um pouco da sua história para que o leitor tenha a possibilidade de, ao longo desse caminhar, ir colecionando pedras. Pedras que se fundam em sabedoria e poeticidade.

Ângela Vilma Santos Bispo nasceu no interior da Bahia, mais precisamente em Ubiraitá. Ainda muito pequena, no ano de 1971, aos quatro anos de idade, mudava-se para uma antiga cidade mineradora da Chapada Diamantina, chamada Andaraí. Tendo como pais Terezinha Santos Bispo e Albino Desidério Bispo, e uma irmã, um ano mais velha, Cláudia Maísa Bispo dos Anjos, Ângela era a mais introvertida nas brincadeiras das meninas. Seu medo de fotografia deixava-a assustada, saindo cada vez mais tímida a cada foto que tirava.

No ano de 1986, iniciava o trabalho como professora de datilografia. Em 2001, começou a trabalhar como professora de literatura em Paripiranga. Até hoje, dedica sua vida a escrever sobre obras importantes do famoso escritor Herberto Sales, também nascido em Andaraí, Bahia, no dia 21 de setembro de 1917. Em 2007, iniciava o trabalho na Universidade do Estado da Bahia - UNEB, também como professora de literatura no Campus XXIV, em Xique - Xique, interior da Bahia, atualmente mora em salvador, desde 07 de agosto de 2004. Além de Poemas para Antônio, já publicou outros quatro livros: Poemas escritos na pedra, Beira- vida, Ela, João e o terno e A tessitura humana da palavra: Herberto Sales contista. Atualmente, continua lecionando na área de literatura, na Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

Após fazermos esse mergulho por algumas partes desse rio profundo, que é a vida da autora, começamos a compreender como a imagem da pedra está presente em Ângela Vilma desde muito cedo. Esse deslocamento para junto da Chapada Diamantina, onde as estruturas rochosas que cercam o ambiente contrastam com a pequenina Pepita, de mãos pequenas e cabelos longos, de olhos rápidos e escrita audaciosa, capaz de penetrar na vida do leitor através da sua poética que, ao mesmo tempo, que é água escorrendo pelos dedos, é pedra que se funde em sabedoria, sensibilidade e beleza.

Ricardo Nonato Silva (2011:1), ao discorrer sobre a palavra pedra na obra da autora, assim a descreve: “a palavra ‘pedra’, presença insistente ao longo do livro, delineia, desde seu primeiro poema, o sentido de uma espera que atravessa os tempos e se faz contemplativa”. Pedra, palavra recorrente na poética da autora, não passa despercebida aos olhos de um leitor atento, revelando essas novas dimensões e situações de que nos fala Massaud Moisés, despertando a curiosidade de analisar, de perto, qual a ligação entre pedra, o eulírico e o amor, já que o eulírico se desnuda ao falar de um amor que, como a pedra, resiste ao tempo.

Todos esses detalhes acabam nos fornecendo um tipo único de experiência, justamente pelo fato de produzir novas formas de vida possível, e diferente do que estamos acostumados a viver, por conta desse trabalho com a imaginação que a poesia, enquanto elemento da literatura é capaz de nos proporcionar, conforme aponta Moisés:

Ora, a Literatura fornece um tipo singular de experiência, porquanto trabalha com a imaginação, que produz formas de vida possível e diferente da nossa. E tal experiência, colhida no contacto com a imaginação criadora do escritor, enriquece nossa maneira de ver a realidade, uma vez que a Literatura, caminhando antes da vida, lhe vai insinuando os rumos que pode trilhar. Desse modo, o homem se aperfeiçoa com a assimilação de experiências ficcionais antecipadoras ou reveladoras de dimensões e situações para além de seu mundo comum. (MOISÉS, 2003, p. 43)

Publicada em 2010, a obra Poemas para Antônio reúne uma coletânea de quarenta e três poemas, a princípio dirigidos a um destinatário específico, de nome Antônio. No entanto, quando adentramos na leitura da obra, logo percebemos que Antônio assume um lugar fictício, e os poemas a ele endereçados passam a ser de todo e qualquer leitor, uma vez que o eulírico de cada um vai tratar de algo inerente ao homem, a saber, o amor.
Ao abrimos o livro, logo nos deparamos com pedras que começam a despencar do precipício amor, conduzindo-nos a uma viagem que não acabará com essa primeira chuva de pedras que enfeitam o encontro. Nessa longa estrada em busca de Antônio: “[...] No ritmo das pedras que se eternizam / Perto das águas, em ti me detenho. / E como as estradas, teu amor me acolhe / no abandono mais triste, mais sereno”.

É possível percebermos nos versos acima, a eternização do amor a partir da imagem da pedra, enquanto elemento sólido, resistente às intempéries do tempo, que é constantemente banhada por ondas de solidão e desilusões advindas do ato de amar, sendo, portanto, a pedra, símbolo da própria poesia. Ângela Vilma trata de um amor que, como as pedras, tocadas por incontáveis ondas, a cada dia vão se renovando num ritmo frenético, ao alimentar-se da serenidade de um isolamento, que abre caminhos para que esse amor torne-se firme, consistente. E coberto por limos de esperança, ainda que abrindo pequenas fissuras, não morra jamais. Somos nós os vários Antônios a bailarem ao som de Anfíon, nesse ritmo das pedras que se eternizam através da memória, da vida e do amor.

Como já citado anteriormente, a figura da pedra se apresenta como símbolo da própria poesia [...]. Reiteradas vezes, esse símbolo se apresenta aos olhos do leitor, embora, às vezes, veladamente [...]. Segundo a mitologia grega, Anfíon era um músico cuja melodia atraía para si até mesmo as pedras; portanto, foi dessa maneira, através do som de sua flauta, que tal personagem edificou os muros da cidade de Tebas: pedra sobre pedra. Assim como Anfíon, o poeta com seu canto (“flauta”) doma o acaso (“raro animal”) e, do nada (do “deserto” ou da folha em branco), ergue uma cidade (o próprio poema). (MORAES, 2010, p. 9)


No poema Cansaço, deparamo-nos novamente com mais uma pedra: “Me esperavas como uma pedra/ retida no deserto, regresso/ ao que um dia foste [...]”. Neste poema, encontramos um eulírico que se mostra cansado, queixando-se da inércia do amado frente ao seu amor, de modo que este, como uma pedra estática, não se move diante desse amor, contentando-se, portanto, com algo já vivido, com aquele amor que, há tempos, como uma pedra, retida no deserto gélido da certeza de ser amado, não sente mais necessidade de expressar. E apenas espera, permanecendo-se cálido diante do amor. Aqui, a pedra representa a frieza do amado, o silêncio perante um amor que para sempre o pertencerá. Ao queixar-se da inércia do seu amado, percebemos que, no eulírico, há um desejo latente e auspicioso em reviver um amor, que ainda permanece o mesmo.

Em Epitáfio, percebemos um eulírico que se mostra desiludido diante da dureza, e rigidez do amado: “Pedra: tudo que és./ E eu que pensava encontrar água,/ nas tuas mãos petrificadas/ morro outra vez”. Percebemos, aqui, a busca incansável do eulírico por esse amor idealizado como único, como vida que se intensifica a cada uma dessas buscas. Buscas essas que se tornam incansáveis como as correntezas de um rio permanente. Mas a dureza do amado significa a morte, a tépida certeza de que não há volta, que os caminhos se diluem.

E as mãos que, petrificadas, destroçam um sentimento tão intenso, são as mesmas que sufocam o ser, que prefere a morte a ter que viver sem esse amor, restando o desabafo das palavras, que são pedras a rolar nos caminhos da poesia, essa figura excêntrica da solidão humana:

[...] a figura da Pedra [...] é constantemente comparada com a Palavra, uma vez que ambas são elementos fundadores. Portanto, pode-se dizer que [..] na imagem da Pedra há uma representação e um símbolo de sua própria poesia: dura e fria, mas, ao mesmo tempo, extremamente forte e firme. (MORAES, 2010, p. 4)

No poema A despedida, o eulírico aponta para a ideia de que, após a despedida, as pedras (Natureza) permanecem, restando ao homem contemplá-las. Dito isto, percebemos que a pedra surge mais uma vez na poética de Ângela Vilma como elemento de algo que resiste ao tempo. Daí percebemos que, como a pedra, o amor do eulírico persiste, mesmo após as despedidas, onde alma e pedra se juntam numa relação muito íntima, cultivando cheiros e sabores, conforme observamos no pensamento a seguir:

Tradicionalmente, a pedra ocupa um lugar de distinção. Existe entre a alma e a pedra uma relação estreita. Segundo a lenda de Prometeu, procriador do gênero humano, as pedras conservaram um odor humano. A pedra e o homem apresentam um movimento duplo de subida e de descida. O homem nasce de Deus e retorna a Deus. A pedra bruta desce do céu; transmutada ela se ergue em sua direção. (...) A pedra bruta é considerada ainda como andrógina, constituindo a androginia a perfeição do estado original (CHEVALIER & GHEERBRANT, 1991, p.696 apud MORAES, Fabrício)


De acordo com o pensamento supracitado, pedra e homem fazem parte de um mesmo ciclo, um ocupando o lugar do outro, num movimento de indas e vindas, assim como o amor por Antônio, alimentado por um eulírico que submerge a cada dia para o outro existir, e existindo. Esse amor permanecerá submerso na alma pelo decorrer de toda a vida. E entre abandonos, despedidas e crueldades, nem imergindo deixará de existir:

Das crueldades

Resgatar em teus olhos a ausência
Vestida da mais ofensiva distância
E golpeá-la, incisiva, nessa dança
De seres mortos, melancólicos,
Jogados ao mar, as pedras
Fétidas e submersas. [...] (VILMA, Ângela 2010. p. 34)

No poema Das crueldades, conforme vemos acima, a pedra surge como símbolo de sepulcro para onde o eulírico deseja lançar as ausências, e as mais ofensivas distâncias advindas do seu amado. É para o fundo do mar, junto às pedras fétidas, nos lodos do esquecimento, que deve ser lançado esse amor de ausências. E essas pedras (lembranças) mesmo permanecendo submersas, para sempre ainda continuam vivas nesse rio, de um amor que se eterniza em palavras e esperas, o que aparece na condição de ironia, lançar e ao mesmo tempo recolher para si, um amor que não se vai com o tempo. E “A palavra, assim como a pedra, pode servir de arma – através da “lâmina ambígua” da ironia”. (MORAES, 2010, p. 1)

Ângela Vilma, a Pepita, poetisa das pedras da Chapada, através de uma linguagem encantadora e de uma sutileza que impressiona, como as ondas que se quebram sobre a praia das nossas desilusões, arrebenta-nos por entre as pedras dos nossos amores, pois, conforme nos aponta o pensamento a seguir:

[...] trabalha à sua maneira, à maneira que [...] considera mais conveniente à sua expressão pessoal. Do mesmo modo que [...] cria a sua mitologia e sua linguagem pessoal, [...] cria as leis de sua composição. Do mesmo modo que [...] cria seu tipo de poema, cria seu conceito de poema, a partir daí, seu conceito de poesia, de literatura, de arte. Cada poeta tem a sua poética. (MELO NETO, 2003. p.724 apud MORAES, Fabrício).


Diferente do discurso de que o amor tem se tornado uma temática desgastada ao longo dos tempos, Ângela Vilma vai criando sua mitologia, sua composição e sua linguagem pessoal para deixar claro que o amor ultrapassa o próprio tempo e, como as pedras, que ora tornam-se pesadas, cálidas, ora gélidas ou distantes, não se corrói tão facilmente, nem mesmo entre Despedida ou Cansaço Das Crueldades, estaremos eternizados, nem que seja como um Epitáfio. E quem de nós não gostaria de ser para sempre Antônio?

REFERÊNCIAS:

MOISÉS, Massaud. A criação Literária. 17ª ed. São Paulo: Cultrix, 2003.

MORAES, Fabrício Tavares de. A simbologia da pedra na poética de João Cabral de Melo Neto. Mafuá, Florianópolis, ano 8, n. 13, março 2010.

VILMA, Ângela. Poemas para Antônio. V783 (Coleção Cartas Bahianas). P55 Edições, Salvador, 2010.

SILVA, Ricardo Nonato Abreu. São para você esses poemas. 2011.